Itália à procura de novos autores

Dez anos atrás, "Viva a Liberdade" fez o siciliano Roberto Andò ser tratado como um sopro de ar fresco na cena política do audiovisual da pátria de Fellini, a partir de sua participação no Festival de Karlovy Vary, em telas tchecas. Na sequência, "As Confissões" (2016) reafirmou seu lugar de provocador, marcando sua parceria com Toni Servillo, o Raul Cortez da Itália. O lugar da crítica social, com traços de humor e perplexidade, na obra do realizador de 64 anos se amplia com "A Estranha Comédia da Vida" ("La Stranezza"), que chega ao Brasil nesta reta final de 2023.

"Tenho um percurso um tanto anômalo no cinema, onde passei um tempo como assistente de direção, antes de narrar minhas histórias, e o faço neste filme falando de um artista em busca de um dispositivo, do que falar", diz Andò ao Correio da Manhã, num papo via Zoom, numa referência a um ícone da prosa: Luigi Pirandello (1867-1936), dramaturgo e escritor. "A dimensão política dele é muito controversa, pois se sabe de seu lado fascista, que não pode ser negado. Só que ele acabou ficando desiludido pelo que viu".

Embora não integre a série A do time que mantém o cinema italiano vivo nos grandes festivais (no qual brilham Nanni Moretti, Alice Rorwacher, Marco Bellocchio, Paolo Sorrentino, Laura Bispuri, Mario Martone e Matteo Garrone), Andò construiu uma estética muito particular de 1995 até hoje, por meio de 12 produções para o cinema e dois telefilmes, ligado ao trama do descontrole. Servillo, famoso aqui por "A Grande Beleza" (2013), é seu ator fetiche, ajudou a popularizá-lo fora da Europa e volta a escudar o cineasta em "La Stranezza". Sua direção de arte, recriando o Velho Mundo dos anos 1920, é um primor.

"Tentei fazer um filme sobre a solidão do artista", diz Andò.

Longa de abertura da seleção carioca da 8½ Festa do Cinema Italiano 2023, em junho, "La Stranezza" esbanja bom humor. É estimulante a ideia de ver Servillo no papel de Pirandello, dramaturgo e autor de "O Falecido Matias Pascal" (1904) e "Assim É (Se Lhe Parece") (1917), ganhador do prêmio Nobel em 1934. O audiovisual da pátria de Fellini anda revolvendo com frequência o legado de Pirandello, vide o recente "Leonora Adeus" (ganhador do Prêmio da Crítica na Berlinale 2022), de Paolo Taviani. A chave deste recente interesse pela obra do escritor se reporta à maneira como Pirandello se reporta à culpa sem vetores morais, o que se alinha ao ethos da contemporaneidade, em sua fluidez e liquidez.

"Ele integra um grupo de pensadores que deram ao mundo novas perspectivas, ao lado de Freud e de Einstein. Os três romperam fronteiras. Freud nos apresentou a dimensão do inconsciente. Einstein fez o mundo descobrir novas veredas na Física. Coube a Pirandello descobrir um modo de fragmentar a unidade do indivíduo na arte", diz Andò.

Na trama escrita por Andò, em parceria com Ugo Chiti e Massimo Gaudioso, Pirandello encara uma crise criativa no momento em que esbarra com dois atores de espírito mambembe, Onofrio Principato (Valentino Picone) e Sebastiano Vella (Salvatore Ficarra, brilante), que estão ensaiando um espetáculo com intérpretes não profissionais, num processo em que vaidades coletivas afloram. O método deles desperta a curiosidade de Pirandello, que se comporta com um observador atento, mas silencioso, ruminando hipóteses criativas.

"No contato com o teatro popular, Pirandello vê meios de fazer o público reagir e participar do processo de criação, de modo a gerar um processo filosófico de busca pela verdade", diz Andò, orgulhoso de integrar o legado audiovisual de seu povo. "Eu fiz assistência para Francesco Rosi, diretor do grande 'As Mãos Sobre a Cidade' e de 'O Bandido Giulianno', e, com ele aprendi o valor tradição. Ela é valiosa e não deve ser encarnada por nós como algo limitador".