O melhor está por vir: O '8 ½' do italiano Nanni Moretti

Roteiro é um ímã de risos, mas também de reflexões sobre ideologias, as que desmancharam no ar e as que permaneceram.

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Nanni Moretti (de barba ao centro) tem uma atuação primorosa no papel de um cineasta em crise em 'O Melhor Está Por Vir'

Chora-se aos baldes com "O Melhor Está Por Vir" ("Il Sol Dell'Avvenire"), novo e deslumbrante exercício autoral do italiano Nanni Moretti à frente e por trás das câmeras. Tem picardia, tem doçura, tem até tabefe na cara da cultura do streaming. É o "8 ½" dele, com ecos de Fellini.

É o melhor Moretti desde "O Quarto do Filho", que rendeu a ele a Palma de Ouro de 2001. Sua excelência se impõe numa obra que ostenta joias como "O Crocodilo" (2006) e "Mia Madre" (Prêmio do Júri Ecumênico de Cannes em 2015). Celebrando 50 anos de carreira, Moretti inunda a telona de elegância assumindo o protagonismo de uma comédia triste com toques de musical. Vale lembrar como ele esteve bem, fora de sua própria filmografia, em "Caos Calmo", indicado ao Urso de Ouro de 2008. A surpresa é o fato de seu regresso à telona se dar pelas vias do otimismo.

É necessária uma genealogia para que se entenda (bem) o lugar de "O Melhor Está Por Vir" - e sua trama sobre um cineasta às voltas com crises nos sets e em sua casa - na filmografia de um diretor sempre provocador. Na ativa desde a estreia dos curtas "Paté de Bourgeois" e "La Sconfitta", em 1973, Moretti foi a clareira que, pelas vias da ironia e da sátira política, manteve a grandeza do cinema italiano viva (e festejada) na década de 1980. Foi naquele momento, a partir de 1985, que começou a Idade Média midiática na qual Silvio Berlusconi (1936-2023), no comando parlamentar daquele país, sucateou a produção audiovisual de sua terra, a fim de valorizar mais a TV do que a telona. Estamos falando de uma terra de gigantes: Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini... Trata-se de uma terra próspera na seara dos filmes de gênero, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) ou nos épicos de gladiador (o Peplum). É uma terra que minguou por um bom tempo, de 1986 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas.

Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firme, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas, e o até hoje imparável Marco Bellocchio, responsável pela joia "De Punhos Cerrados" (1965) e pelo enervante "O Traidor" (2019). Mas esses dois diretores são crias dos anos 1960. Moretti, não. Ele estreia nos longas em 1976, com "Eu Sou Autossuficiente", que anda disponível no streaming Reserva Imovision. É, portanto, cria de uma outra Itália, desmobilizada da tradição e mesmo da revolução dos modernos do nuovo cinema de vanguarda. Mas, nem por isso, ele deixou de ser inquietante, como comprova o devastador "Tre Piani", lançado por ele em 2021, e "O Melhor Está Por Vir".

Candidato a cult nas telas brasileiras, o filme traz Moretti no papel do realizador de verve socialista Giovanni. No auge da feitura de um filme sobre a violência soviética contra a Hungria, nos anos 1950, vista sob a ética do Partido Comunista Italiano, Giovanni recebe golpes de onde menos espera, até da família. Além de sofrer com a falta de financiamento e com uma intervenção da Netflix (a quem ele trata com a mais abrasiva picardia), ele pode perder seu casamento, há muito desgastado. Sua mulher e produtora, Paola (Margherita Buy), já não tem mais paz na relação e perdeu a paciência com as vaidades de seu companheiro. Nesse momento, fato e fábula se misturam num embolado de ficção e de realidade em torno da rotina profissional de Giovanni, reproduzida em cena com leveza e bom humor.

Seu roteiro é uma ímã de risos, mas também de reflexões sobre ideologias, as que desmancharam no ar e as que permaneceram. É uma cartografia afetiva doída e, ao mesmo tempo, redentora, apoiada na montagem cirúrgica de Clelio Benevento. À luz mansa da fotografia de Michele D'Attanasio, a fina edição de Benevento cerze com finesse um enredo em que Moretti se mostra confessional.

Recentemente, a já citada plataforma Reserva Imovision, disponibilizou filmes essenciais da formação da autoralidade de Moretti: "Ecce Bombo" (1981), "Sonhos de Ouro" (1983) e "A Coisa" (1990). Vale uma revisão de sua carreira.