Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Pasolini nas alturas

Pasolini, o cineasta, encarou a censura e a truculência fascista | Foto: Divulgação MUBI

 

Inimigo jurado do fascismo, empático ao proletariado sobre todas as coisas, Pier Paolo Pasolini (1922-1975) terá trechos de sua intimidade, de sua peleja incessante pela livre expressão e de sua luta pela arte como espaço de transgressão encenados no palco do Teatro Glauce Rocha, no Centro, a partir desta sexta com o espetáculo "Pasolini - No Deserto da Alma".

Até 4 de fevereiro, às sextas e sábados, às 19h, e aos domingos, às 18h, o diretor Francis Mayer conta ao público das artes cênicas cariocas os percalços que marcaram a obra do poeta, dramaturgo e cineasta italiano, assassinado aos 75 anos, na praia de Óstia. A Amazon Prime pôs faz pouco um de seus melhores filmes em streaming: "As Mil e Uma Noites", ganhador do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 1974.

Multiartista, Pasolini se apresentava como "escritor", tendo escrito poemas e peças e publicado livros seminais como "Amado Meu" (publicado postumamente há 42 anos). Dá para comprar via Amazon Prime a antologia de suas poesias editadas pela Cosac & Naify, e uma garbosa coletânea da Editora 34 de seus "Escritos Corsários", com textos publicados na imprensa italiana entre 1973 e 1975, discutindo os movimentos estudantis de 1968, a decadência da Igreja Católica e as relações entre governo e máfia na Itália.

Na indústria cinematográfica, Pasolini fez sucesso comercial e gerou controvérsias, sempre no embate contra os tabus da fé, da moral e do preconceito, afirmando o querer e a liberdade LGBTQIAPN . "Os Contos de Canterbury" (Urso de Ouro de 1972) e "O Evangelho Segundo São Mateus" (Prêmio Espacial do Júri no Festival de Veneza, em 1964) estão entre suas produções mais aclamadas.

No palco, Mayer promete reviver essas façanhas do realizador de "Pocilga" (1969) e "Teorema" (1968) focado nos seus momentos mais intensos, apostando num formato confessional, no qual propõe uma conversa com o público. Maurício Silveira assume o papel central, numa promessa de uma atuação tocante - como inerente à fina condução de elencos feitas pelo encenador.

Os relacionamentos do cineasta são retratados a partir do trato com dois amores: Ninetto Davoli e Giuseppe Pelosi, encarnados por Léo San e Diego Rosa. Rose Scalco entra em cena em dois papéis.

"Num país católico-fascista, Pasolini ousou exprimir sua visão do mundo inspirada pelo desejo físico dos jovens rapazes do campo e da periferia, introduzindo sua fúria sexual na literatura e no cinema", diz Mayer no material promocional na peça. "Homossexual assumido, artista polêmico, pagou caro por sua coragem: escândalos, processos e, por último, numa noite de novembro foi vítima de um assassinato brutal e misterioso que ainda hoje gera dúvidas sobre seus reais motivos e autores. Porém, recentemente, o processo foi reaberto para averiguação de novas provas que podem atestar como crime político pela ocorrência de fatos diferentes daqueles narrados pelo jovem que se entregou afirmando ser o culpado", prossegue o texto.

No cinema brasileiro, Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, tem um filme arrebatador sobre Pasolini para lançar em TVs e plataformas: "Celebrazione". É um curta-metragem rodado no Rio, entre a Lapa e o Arpoador, em 2022, estruturado como se fosse uma carta de amor a esta cidade, ao cinema e, antes de tudo, à irreverência pasoliniana. Na praia, o diretor, mais conhecido como Bigode, rodou o momento em que um dos mais revolucionários criadores do audiovisual, à força de cults como "Salò, ou Os 120 Dias de Sodoma" (1975), apresenta as belezas da cidade à sua amiga, a cantora lírica Maria Callas (1923-1977). Zulma Mercadante vai vive Callas e Erom Cordeiro encarna Pasolini, numa produção pilotada por Cavi Borges, feita na guerrilha absoluta.

"Pasolini tomou posições polêmicas, mas sempre corajosas, ao perceber na sociedade uma mudança do fascismo para o consumismo", disse Erom, ao Correio da Manhã, durante as filmagens. "Não sei como ele iria reagir a este mundo que temos hoje".

Em "Celebrazione", Bigode, diretor do premiado "For All - O Trampolim da Vitória" (1997), revê uma paixão que Pasolini viveu no Rio por um jovem soldado, Joaquim, interpretado por Marcelo Cavalcanti. O rapaz leva seu amante italiano às favelas, sobre as quais o cineasta escreveu um poema. "O texto desses versos compara os meninos prostitutos de Roma com um rapaz que ele conheceu em Copacabana.

Há uma analogia entre a pobreza italiana com a das favelas onde foi levado por Joaquim e os dois fascismos - o brasileiro, na sua versão de 1970, da ditadura escancarada, e o italiano, responsável por seu assassinato, na praia de Ostia em 1975", explica Bigode. "Com 'O Evangelho Segundo São Mateus', Pasolini mostrou ao cinema um Cristo revolucionário".

 

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