Vitória estética na incansável luta antirracista do Brasil, a aquisição do acervo do dramaturgo e diretor teatral Ubirajara Fidalgo (1949-1986) pelo Instituto Moreira Salles garantiu um abre-alas cheio de bons augúrios para o 2024 da cineasta Sabrina Fidalgo. Filha do encenador, ela é dona de uma carreira aplaudida internacionalmente. Curtas-metragens como "Rainha" (2016) e "Alfazema" (Prêmio de Melhor Direção no Festival de Brasília de 2019) fizeram dela um aríete contra a exclusão, inspirando caminhos para sua necessária estreia em longas. Falta pouco para que a realizadora possa debutar no formato, a julgar pelo azeitado andamento de "Time to Change", documentário dela com a produtora Gullane, envolvendo ainda Globo Filmes, GloboNews e Canal Brasil, com apoio da Ford Foundation. A seu lado, numa direção a quatro mãos, está o fotógrafo suíço de streetstyle Yvan Rodic, que fez fama sob a alcunha de Facehunter.
Ela frisa sempre que o .doc mescla vivências bem distintas - "Temos uma mulher preta brasileira, cineasta, e temos um artista visual branco da Suíça" - num combate ético para responder uma questão histórica: como decolonizar o mundo e o sistema?
Iniciado em 2023, num périplo pelo planeta, "Time To Change" investiga como o privilégio branco ainda molda todos os aspectos das sociedades ao redor do mundo, inclusive (ou melhor, sobretudo) no Brasil. É um ensaio sobre "mentalidades coloniais". Ela tem um roteiro de ficção capaz de deslumbrar quem lê, chamado "Karnaval", que promete dar papéis nada usuais - e surpreendentes - a um elenco de peso, com astros e revelações.
No meio do processo, Sabrina antecipou o que está por vir ao Correio, propondo um balanço do que mudou na cultura com a chegada de Lula ao Poder, em janeiro do ano passado.
Em que pé está o documentário "Time To Change" e de que maneira esse filme aborda os temas do racismo no Brasil?
Sabrina Fidalgo: Estamos em produção. Ainda temos filmagens para fazer mas, simultaneamente, estamos em fase de pré-montagem, junto com a editora Cristina Amaral. Como o material é extenso e o roteiro bem complexo, achamos por bem antecipar essa etapa da montagem, para ganharmos tempo. O filme pauta o racismo de cabo a rabo, porque a nossa investigação parte do princípio de que o status quo global resulta de 600 anos de colonização europeia no mundo. Como isso repercute até hoje? Quais são suas sequelas, tanto para os opressores quanto para os oprimidos, que, nesse caso especifico, representam o Norte e o Sul global? O racismo é o desdobramento direto desse projeto colonial. Sem a implementação do racismo, enquanto ferramenta de poder, destruição e submissão, esse projeto colonial europeu jamais teria vingado e o Brasil hoje ainda seria um território 100% indígena. Não dá para não falar sobre colonialismo, capitalismo e territorialidade sem tocar no racismo.
Como anda o projeto "Karnaval", seu primeiro longa de ficção, e que novos filmes seus estão por vir?
"Karnaval" é um projeto que está sendo desenvolvido paralelamente ao "Time to Change", porém em outro estágio de produção. Vou terminar um set e entrar no outro, literalmente. Tenho um projeto de série documental e de um outro longa de ficção já a caminho, para depois de "Karnaval". Também estou na reta final de um livro de memórias com a editora Cia das Letras e outro que será um apanhado dos textos da minha coluna online para a Vogue Brasil. E no meio disso tem projeto teatral também.
Qual é a sua impressão das primeiras mudanças na Cultura já trazidas na atual Era Lula? Como você avalia o atual cenário audiovisual no país?
É nítida a mudança de um desgoverno para a nova era Lula, esse sim, um governo de verdade. Saímos da total inércia no setor cultural para o início de uma (re)construção de país. Estamos no início dos processos da volta do MinC, da SaV, da Ancine, das secretarias de cultura, das políticas públicas, dos fomentos e dos editais. O retorno da implementação de cotas e os projetos identitários nesse setor também nos dão esperanças de dias melhores. Claro que milagres não existem, sabemos que essa máquina pública ressuscitada de uma tentativa de desmonte, ao longo de oito anos, precisará de muito tempo para se reestruturar, desburocratizar-se e se agilizar. Os processos ainda são lentíssimos, o que prejudica muito o fazer cinematográfico de muitos talentos. Mas, obviamente, voltamos a respirar sem aparelhos nesse sentido. O ideal seria poder não contar unicamente com políticas públicas para realizar projetos. Mas esse é um luxo para poucos.
Como você avalia a aquisição do acervo do diretor teatral Ubirajara Fidalgo, seu pai, pelo Instituto Moreira Salles? O que compõe esse acervo?
Eu acho importantíssima, e histórica, essa aquisição do acervo do meu pai junto ao IMS. É o acervo do dramaturgo preto com a obra teatral mais extensa, visionária e potente e que ainda é obscura para a maioria dos brasileiros. Isso significa o rompimento com o apagamento sistêmico que sempre foi imposto a nós, artistas pretos. Tenho muito orgulho desse acontecimento e sei que o IMS é o melhor lugar para cuidar do legado do meu pai, Ubirajara Fidalgo, dramaturgo, diretor de teatro, empresário, apresentador de TV, fundador do TEPRON (o Teatro Profissional do Negro) e do IPCN (o Instituto de Pesquisas da Cultura Negra) junto com minha mãe, a produtora teatral Alzira Fidalgo. Foi graças a ela que esse legado ficou intacto. Ela sempre foi a grande guardiã desse tesouro nacional. O acervo inclui textos originais, muitos manuscritos, fotos, negativos, cartas, documentos, cartazes, ingressos, carimbos, croquis, desenhos, materiais de trabalho e várias mídias, como fitas cassetes com gravações em áudio das trilhas sonoras de vários espetáculos, gravações de espetáculos em diferentes formatos e muito, muito mais.