Ao finalizar suas atividades, no sábado, celebrando a força do cinema autoral contemporâneo, o Festival de Küstendorf, na Sérvia, jogou seus holofotes sobre um ator que virou sinônimo de transgressão na seara do filme independente: o alemão Franz Rogowski. O longa-metragem de encerramento do evento eslavo, "Disco Boy", já foi lançado no Brasil e pode ser (re)visitado via streaming no https://www.belasartesalacarte.com.br/disco-boy.
Mas o título recente de maior destaque de Rogowski está na MUBI: "Passages". Ele permaneceu semanas a fio nas salas de exibição brasileiras no papel de um cineasta em dúvida de seus sentimentos, dividido entre o marido (Ben Whishaw) e uma namorada (Adèle Exarchopoulos). O roteiro do filme é do carioca Maurício Zacharias, rodado sob a direção de Ira Sachs. Tá na MUBI, assim coimo outros bons trabalhos do astro n° 1 da Alemanha hoje. Ele tem três produções de peso pela frente para este ano: "The Way Of The Wind", o longa de Terrence Malick sobre Jesus Cristo; "Bird", de Andrea Arnold; e "Wizards!", de David Michôd.
"Sinto que o streaming nos abriu novas possibilidades de acesso aos filmes, mas continuo a ter o cinema, das salas, como proposta, acreditando em narrativas avessas a algoritmos, voltadas a dilemas humanos", disse o ator ao Correio da Manhã, via Zoom.
Contundente estudo sobre inadequações territoriais: "Disco Boy" é dirigido por Giacomo Abbruzzese e ganhou o mundo na Berlinale, em fevereiro passado. O Festival de Berlim de 2023 presenteou esse misto de drama existencial e thriller bélico com a láurea de Melhor Contribuição Artística, dada à sua direção de fotografia, assinada pela francesa Hélène Louvart (que trabalhou com o cearense Karim Aïnouz em "A Vida Invisível").
Amparado numa ginástica de iluminação e de enquadramentos nada convencional, "Disco Boy" propõe uma espécie de amálgama existencial e sensorial entre o revolucionário Jomo (Morr Ndiaye), do Níger, e o imigrante ilegal bielorrusso Aleksei (Rogowski, em genial atuação). Enquanto o jovem nigerense se une à guerrilha contra companhias de petróleo, o "alien" eslavo se alista na Legião Estrangeira como forma de ganhar nacionalidade francesa. Após o grupo de Jomo sequestrar cidadãos franceses, Aleksei é enviado para comandar uma operação a fim de detê-lo. Mas uma conexão nas raias do misticismo aproximará os dois.
"Existe sempre algo de pessoal meu na maneira como os personagens são compostos, que vai pela minha percepção da raiva, do amor, da ternura, e que não se expressa por palavras, mas, sim, por gestos. Não tento jamais colorir uma atuação com algo que não tenho", diz Rogowski ao Correio da Manhã em entrevista via Zoom, mediada pela MUBI, plataforma que dedicou a ele uma retrospectiva, ainda no ar, contemplando títulos premiados inéditos em circuito aqui. "Escolho papéis de diretores cuja escrita de roteiro me desperte o olhar ou a curiosidade. Tenho recebido convites internacionais por conta da circulação de meus filmes alemães por festivais e pela MUBI, mas eu celebro o fato de a Alemanha não ter, hoje, um cinema que possa ser rotulado sob um só ponto de vista, sob uma única tendência. Existe pluralidade e, nós, que construímos esse cinema estamos atrás disso, da diversidade de vozes", explica o ator, que tem uma formação em dança, como bailarino e como coreógrafo. "É por meio do corpo que eu expresso a verdade dos personagens".
Suas coreografias afetivas se desenham de forma sutil em "Disco Boy", mas em outros filmes também, entre eles "Love Steaks" (2013), de Jakob Lass; o divertido "Nos Corredores" ("In The Aisles", Prêmio do Júri Ecumênico na Berlinale 2018); o sombrio "Luzifer", de Peter Brunner (uma das revelações do Festival de Locarno em 2021); e o drama de tintas LGBTQA vencedor do Prêmio do Júri da mostra Un Certain Regard de Cannes, do ano passado: "Great Freedom", de Sebastian Meise. Esse último foi um dos títulos europeus mais elogiados na seleção da Croisette do ano passado e conquistou outros 19 prêmios com sua luta contra homofobia e sua aposta lúdica no amor romântico.
"É um filme que escorrega de qualquer rótulo, como o grande cinema se propõe a ser", disse Rogowski, que recria, sob a batuta de Meise, um crime estatal de sua Alemanha natal: a criminalização da homoafetividade.
Encerrada só nos anos 1990, a política homofóbica da Alemanha é retratada por Meise a partir do pós-guerra, quando Hans Hoffmann (papel de Franz) é repetidamente encarcerado por ser homossexual. A única relação estável na sua vida torna-se o seu companheiro de cela, Viktor (Georg Friedrich). O que começa com a repulsa transforma-se em uma paixão, que nasce silenciosa e violenta.
"Vazio é uma palavra que muda de sentido quando você a prende a extrair potência da quietude", diz Rogowski. "Trabalhávamos, Friedrich, Meise e eu, num espaço muito pequeno, referente a uma cela, pra expressar todo um universo de que os verbos não dão conta".
Dirigido pelo aclamado Michael Haneke em "Happy End" (2017), que não teve carreira comercial no Brasil, em tela grande, Rogowski brilhou ainda em "Eu Estava em Casa, Mas..." (2019), que rendeu o Prêmio de Melhor Direção à realizadora Angela Schanelec na Berlinale. "Procuro filmes que celebrem a liberdade", define o ator. "O cinema pode descobrir no streaming um espaço de respiro, que não ignora a tela grande e a sala escura, mas serve de espaço de expressão".