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Radiografia do antissemitismo

Arieh Worthalter vive Pierre Goldman, alvo da repressão antissemita da polícia francesa | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Saldos de barbárie inerentes à guerra Palestina x Israel agravam uma intolerância histórica de ambos os lados da geopolítica internacional, o que amplia a visibilidade de longas-metragens sintonizados com o antissemitismo, como foi o caso do recente "Golda", com Helen Mirren, e de um thriller de tribunal eletrizante ainda inédito por aqui: "O Processo Goldman".

Primeiro achado do Festival de Cannes de 2023, revelado na mostra paralela chamada Quinzena de Cineastas, a produção é capaz de arregalar o mais cético dos olhares com a retidão de sua narrativa e a pujança de sua luta antirracista. Na Europa, em circuito comercial, sua carreira tem sido de sucesso, de público e crítica.

O racismo em questão em "Le Procès Goldman" se refere ao antissemitismo: a violenta rejeição a populações judaicas. Cédric Kahn, que assina a direção, tem vasta estrada na direção, com 14 título lançados de 1990 até hoje, com destaque para "A Prece", que concorreu ao Urso de Ouro de 2018. Porém, ele tende a ser mais lembrado como galã maduro. Aos 56 anos, é uma espécie de "bonitão de plantão, já maduro" no cinema francófono, com uma atuação desconcertante em "A Economia do Amor" (2016) e uma forte participação em "Guerra Fria" (2018). Mas, sem negar seu lugar de ator, Cédric parece buscar, a cada ano, mais reconhecimento para seu trabalho como realizador. O convite para que abrisse a Quinzena com um estudo sobre a intolerância a judeus soou um tanto inusitado. Isso até o filme devastador que ele fez batesse na telona de Cannes.

"Diante de um jogo retórico, quem tem que dominar a cena é a palavra", disse Kahn ao fim da exibição de "Le Procès Goldman" na Croisette, sendo procurado por uma horda de potenciais compradores (leia-se distribuidores, exibidores) para sua potente autópsia em corpo vivo da bestialidade estatal da França dos anos 1970.

Aprendiz de montador na equipe de montagem de "Sob o Sol de Satã" (a Palma de Ouro de 1987), Kahn deu a Cannes algo que parece um filme do Costa-Gavras (aquele Costa-Gavras de antigamente, nível "Z" ou "Estado de Sítio"), mas feito hoje, com foco na prática da segregação étnica e cultural. Sua direção nervosa faz da narrativa uma panela de pressão a ferver. Tudo parte de um caso real: o julgamento de Pierre Goldman (1944-1979), autor do livro "Souvenirs obscurs d'un Juif polonais né en France". Embora tivesse cometido furtos e roubos, Goldman sempre negou ter sido o responsável pelo assassinato de duas pessoas durante um assalto a uma farmácia. A ausência de argumentos concretos sobre sua culpa faz crer em sua inocência. Só que uma ala racista da polícia francesa não pensa assim. Em seu filme, somos levados ao ano de 1976 e nos sentamos qual espectadores na corte que julga o processo jurídico dele. Um processo que se descortina diante de nós numa secura. O desempenho de Ariah Worthalter no papel principal, em estouros de raiva, humaniza o longa. É o trabalho mais maduro de Kahn como cineasta.

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