Um cão, um homem de lata, um filmaço
História de 'bromance' entre um cão falante e um androide, 'Meu Amigo Robô', do espanhol Pablo Berger, leva a Nova York dos anos 1980 ao Estação NET Rio, nesta quarta
Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Parece apenas amizade, das boas, mas o rala e rola de afetos entre um cãozinho queer e um androide fã de sorvete retratado na animação "Meu Amigo Robô" ("Robot Dreams") beira uma paixão, daquelas serenas (por mais paradoxal que pareça), que duram, duram, duram... Dura tanto que saiu do Festival de Cannes, cheia de prestígio, e aterrissa hoje no Rio, numa exibição (imperdível) às 18h, no Estação NET Rio, em Botafogo, que serve de esquenta para sua estreia. O que a produção narra é um bromance, o benquerer de pessoas amigas.
Sua argamassa é um quadrinho. Com cerca de 100 mil cópias vendidas, a HQ "Robot Dreams", de Sara Varon, tornou-se um best-seller tão grande para um gibi gestado fora do ventre da Marvel ou da DC que o cinema não poderia ignorá-lo. Estúdios até consideraram a hipótese de filmar a saga antropomórfica de um mundo onde bichos são personificados - e alguns vivem beeeem sozinhos. Mas quem acabou por comprar o projeto foi um cineasta independente espanhol, de origem basca, Pablo Berger (de "Blancanieves"), que resolveu adaptar aquela trama em forma de desenho animado para públicos abertos ao chamado family film (de agradar crianças e marmanos), mas afeitos a narrativas mais ousadas moralmente. Essa ousadia essencial foi o motivo que abriu as portas (e as telas) de Cannes para Berger. Sua releitura para a graphic novel de Berger tem um sabor de nostalgia a mais, com referências ao sucesso de outrora "Kramer vs. Kramer".
"Amo esse filme de 1979, amo a estética de seu diretor, Robert Benton, e amo seu ator, Dustin Hoffman. Meu protagonista, um cachorro com jeito de gente, é o Hoffman. Mas não usamos diálogos. Existe até uma cena em que aparece um outro animal levando o filho pequeno pra aprender a andar de bicicleta. É uma homenagem direta aos Kramers. Tem homenagem ao De Niro de 'Taxi Driver' também. A nossa vida de cinéfilo é cheia de referências a Nova York. Há sempre um filme passado lá em nossa história", diz Berger ao Correio da Manhã em Cannes.
Formado na NY dos anos 1990, onde conheceu sua mulher e onde iniciou projetos de sucesso, como "Torremolinos - De Cama Para a Fama" (2003), Berger aposta numa estrutura simples em "Robot Dreams". Não usa efeitos de computação gráfica em 3D, nem visual poligonal, nem se calça em diálogos educativos. Aliás, nem diálogo seu filme tem. Não precisa. Os olhares de seu protagonista canino dizem tudo.
"Sim, uma imagem pode ser mais forte do que mil palavras, desde que calçada por um som adequado. Pelo menos é isso o que faz do cinema uma arte com gramática própria", diz. "Eu sou um cara da velha guarda, que cresceu vendo desenhos animados sobre amigos, e queria que cada frame desse novo projeto emulasse uma metáfora da solidão e da importância de uma amizade, sobretudo depois do isolamento que a covid-19 nos impôs. Falta toque".
Ímã de lágrimas em Cannes, "Robot Dreams" se encontra nas estações do ano em que o cão de vida vazia inspirado em Hoffman quebra sua inércia emocional depois de comprar um robô (dotado de inteligência artificial) para ser seu companheiro de dia a dia. A trilha sonora, com direito a "September", do Earth Wind & Fire embala a construção do relacionamento deles. "Tem uma coisa de 'O Mágico de Oz', com o Homem de Lata que sonha em ter um coração", diz Berger. "Meus sonhos, em geral, são coloridos. Queria isso num filme sobre sonhos".