Pertencimento, questão autoral

Filmes italianos como 'Disco Boy' incendeiam Küstendorf, o festival de Emir Kusturica, que começa nesta segunda na Sérvia, com debates políticos sobre exclusão

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Disco Boy' mostra uma cultura africana assombrada pela violência europeia

Potencial candidato da Itália ao Oscar 2024, "Io Capitano", de Matteo Garrone, inaugura hoje uma micareta mucho loca de cinema e música na Sérvia, presidida por um ganhador de duas Palmas de Ouro, o diretor Emir Kusturica, chamado Festival de Küstendorf, que assume, do começo ao fim de sua programação, um debate sobre pertencimento. Não por acaso, o fecho de suas atividades, no sábado, antes de suas cerimônias de premiação, fica por conta de um contundente estudo sobre inadequações territoriais: "Disco Boy".

Giacomo Abbruzzese assina a direção dessa experiência sensorial revelada ao mundo na Berlinale, em fevereiro passado. O evento germânico presenteou esse misto de drama existencial e thriller bélico com a láurea de Melhor Contribuição Artística, dada à sua direção de fotografia, assinada pela francesa Hélène Louvart (que trabalhou com o cearense Karim Aïnouz em "A Vida Invisível"). No Brasil, há meios de ver essa produção via streaming: https://www.belasartesalacarte.com.br/disco-boy. Amparado numa ginástica de iluminação e de enquadramentos nada convencional, "Disco Boy" propõe uma espécie de amalgama existencial e sensorial entre o revolucionário Jomo (Morr Ndiaye), do Níger, e o imigrante ilegal bielorrusso Aleksei (Franz Rogowski, em genial atuação). Enquanto o jovem nigerense se une à guerrilha contra companhias de petróleo, o "alien" eslavo se alista na Legião Estrangeira como forma de ganhar a nacionalidade francesa. Após o grupo de Jomo sequestrar cidadãos franceses, Aleksei é enviado para comandar uma operação a fim de detê-lo. Mas uma conexão nas raias do misticismo vai aproximar os dois.

"Li uma crítica na imprensa italiana, na época da Berlim, que classificava o filme de "um musical à mão armada". Achei aquela definição muito sagaz", disse Abbruzzese ao Correio da Manhã, num papo via Zoom. "É uma narrativa performática em muitos sentidos, não só pela dança. Tivemos uma construção de personagem muito pautada pela fisicalidade. O filme busca ser pop, sem perder sua essência reflexiva. Eu não queria fazer um filme que se limitasse a cinéfilos. Desde meus curtas eu penso assim. O pop não precisa se limitar à Hollywood. Uma pequena produção europeia que passou dez anos em gestação e não conta com astros também pode ter essa natureza de conexão popular".

Fã do cinema italiano, Kusturica escalou alguns filmes de lá para Künstendorf, sempre antenado com a discussão existencial de ser (ou não) parte de um grupo, de uma pátria, de um mesmo quinhão da História.

É o que justifica a escolha do épico bélico "Comandante", para uma projeção em telas sérvias nesta quarta. Exibido na abertura do Festival de Veneza, o longa de Edoardo de Angelis (do premiado "Indivisibili") recria a II Guerra Mundial sob os códigos de um filão de gênero que é um imã de sucesso, vide "Maré Vermelha" (1995) e "A Caçada ao Outubro Vermelho" (1990): os filmes de submarino. Mas seu maior chamariz é a escolha de um dos astros de maior talento e popularidade da Itália hoje: o romano Pierfrancesco Favino. Cabe a ele dar vida ao oficial militar Salvatore Todaro (1908-1942), famoso por seu humanismo no mar.

Filmes como o de Edorado e "Disco Boy" resgatam uma tradição cinematográfica que mudou o século XX, a partir do neorrealismo, com "Roma, Cidade Aberta" (1945). A partir dali, a Itália guiou os rumos da autoralidade audiovisual até uma derrocada de sua produtividade, nos anos 1990, motivada por problemas políticos.

"Dos mestres italianos, Michelangelo Antonioni foi importante pra mim", disse Abbruzzese ao Correio. "Eu tenho mais conexão com o cinema político feito nos anos 1960 e 70 do que com o de hoje. Esse cinema do passado tinha ambições de reescrever o imaginário e de reinventar o mundo mesmo seguindo trilhas narrativas nas quais o essencial era contar bem uma boa história. Dos anos 2000 para cá, o uso da câmera na mão, a redução da paleta de cor e a aposta na hegemonia do discurso sobre a trama tirou do cinema a habilidade de criar personagens que sejam maiores do que a vida. Godard dizia que é preciso ser político já no set. isso deve ser lembrado".

Vai ter competição em Küstendorf. A seleção competitiva oficial deste ano reúne uma série de curtas-metragens de diferentes cantos do planeta. Kusturica conduz o evento até a madrugada do dia 28.