'8½', o número da sorte do cinema
Festival sérvio pilotado pelo aclamado diretor Emir Kusturica exibe o cult de Fellini, em cópia nova, numa sintonia com a grandiosidade do cinema italiano de ontem, de hoje, se sempre
Chamado múltiplas vezes de "Fellini eslavo" pela natureza fabular e, ao mesmo tempo, crítica de seus filmes, o diretor sérvio Emir Kusturica não vai deixar o mestre italiano de fora de sua micareta audiovisual, o Küstendorf International Film and Music Festival. A edição de número 17 dessa maratona, iniciada ontem num resort na vila de Mokra Gora, a cerca de três horas de Belgrado, vai exibir "8½" (1963) neste sábado, numa comemoração ao legado do realizador Federico Fellini (1920-1993), valorizando uma de suas obras-primas mais e melhor sintonizadas com a louca aventura de se conjugar o verbo "filmar".
Indicado a 12 Oscars, entre 1947 e 1977, Fellini ganhou uma estatueta honorária da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood no ano em que morreu, três décadas atrás. Partiu num 31 de outubro que deixou o cinema órfão de sua habilidade de usar o sonho para nos fazer despertar. Cannes deu a ele uma Palma de Ouro, por "A Doce Vida", em 1960, e o Prêmio do 40º Aniversário a "Entrevista", em 1987. Já o Festival de Veneza presenteou o demiurgo de Rimini (cidade da costa adriática, na região Emilia-Romagna) com um par de Leões de Prata, dados a "La Strada - A Estrada da Vida" (1954) (que também ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro) e a "Os Boas Vidas" (1953). Numa aritmética rápida das honrarias internacionais que ganhou, somadas a troféus que ganhou em sua Itália de berço, ele contabilizou 68 láureas ao todo, sem contar o prestígio do planisfério cinéfilo em peso, que celebra seu legado como um patrimônio imortal das artes. Uma nova celebração de sua obra vai mobilizar Küstendorf este ano em que a programação de Kusturica foi aberta por uma fábula gestada em Roma: "Io Capitano", de Matteo Garrone.
Entre as demais produções italianas selecionadas por Kusturica, destacam-se "Comandante", de Edoardo De Angelis, e "Disco Boy", de Giacomo Abbruzzese. O site oficial do evento traz ainda um vídeo feito pelo curador de Küstendrof (ganhador de duas Palmas de Ouro, dadas a ele por "Quando Papai Saiu Em Viagem de Negócios" e "Undergound - Mentiras de Guerra") sobre o legado do cineasta Pier Paolo Pasolini (1922-1975), aclamado pela transgressão de "Pocilga" (1969) e "Teorema" (1968). Pasolini virou objeto de estudos das artes cênicas no Rio, graças a uma peça de Francis Mayer em cartaz no Teatro Glauce Rocha.
Sua filmografia ácida vai abrir debates sobre a moral em Küstendorf, ao mesmo tempo em que o clássico de Fellini com Marcello Mastroianni (1924-1996) expõe decadentismos europeus. Em "8½", Mastroianni vive Guido Anselmi, um cineasta que entra em crise em relação a conflitos não resolvidos de sua infância e aos quiproquós com suas mulheres. A produção ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e o de Melhor Figuro em P&B. Teve sessão em Cannes fora de concurso, mas ganhou o Grande Prêmio do outrora respeitado Festival de Moscou. No Brasil, é possível (re)ver o longa via streaming, na Amazon Prime ou no Telecine.
Ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, "Amarcord" (1973) é um dos filmes mais citados por Kusturica, que vai falar de Fellini na sessão de "8½". A ideia de um diretor autor como o cineasta mais famoso da Sérvia abrir uma análise em público sobre Fellini representa um encontro simbólico de titãs. Fellini sempre dizia: "Assim como a pérola é a autobiografia da ostra, todo filme é a autobiografia de quem o dirige". Já Kusturica disse muitas vezes: "Eu sinto que faço sempre o mesmo filme, de novo e de novo e de novo, pois estou sempre falando das minhas raízes culturais sob o filtro do cinema".
Fã do mágico Mandrake das HQs de Lee Falk (1911-1999), Fellini tira parte de sua potência visual das experiências que teve nas artes gráficas, como leitor de gibis e criador de HQs. Já Kusturica traz seu cinema de análises políticas da dissolução da Iugoslávia e de seu trabalho paralelo como músico, à frente da banda The No Smoking Orchestra.
O Festival de Küstendorf termina neste sábado. A seleção competitiva oficial deste ano reúne uma série de curtas-metragens de diferentes cantos do planeta. O programa inicial reúne: "I Promise You Paradise", de Morad Mostafa; Hikuri, de Sandra Ovilla León; "On The Silk Road", de Sherzod Nazarov; "Silhouette", de Savva Dolomanov; "Duck Roast", de Jelica Jerinic; "Violet Country", de Mikhail Gorobchuk. O segundo programa inclui "Lemon Tree", de Rachel Walden; "Short Cut Grass", de Davi Graso; "Bye, Bye Bowser", de Jamin Baumgartner; "The Last Shift", de Askr Unaev; e "9-5", de Masa Sarovic. Já o último bloco das curtas traz "Highway of a Broken Heart", de Nikos Kyritsis; "Madden", de Malin Ingrid Johansson; "mise à nu", de Simon Maria Kubiena e Lea Marie Lembke; "Shanti", de Vivek Rai; "Only The Devil Hates Water", de Lidija Mojsovska; e "The Creature", de Damian Kosowski.