Kusturicalândia
Cineasta ganhador de duas Palmas de Ouro transforma resort nas montanhas da Sérvia num templo de devoção ao filme autoral, com direito a festival
Não é possível comprar Coca-Cola num resort na vila de Mokra Gora, no noroeste da Sérvia, na fronteira com a Bósnia, a cerca de três horas de Belgrado, onde filmes do planeta todo estão em exibição, até sábado, no Küstendorf International Film and Music Festival.
A interdição foi imposta por Emir Kusturica, diretor laureado duas vezes com a Palma de Ouro de Cannes, por "Quando Papai Saiu Em Viagem De Negócios" (1985) e "Underground - Mentiras de Guerra" (1995). Foi ele quem criou o evento e assumiu sua curadoria, levando essa maratona cinéfila ativa - e prestigiada - ao longo de 16 edições.
A mais recente, a de número 17, começou na terça, com a projeção de "Io Capitano", de Matteo Garrone, um dos concorrentes ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Não se vende refrigerante por lá porque ele não aceita símbolos imperialistas. Foi a imposição que ele determinou quando ergueu sua Kusturicalândia.
"Este festival é único no mundo, pois ele não se rende a estrelas hollywoodianas, nem adula celebridades, valorizando vozes autorais que acabam perdendo os holofotes nas maratonas exibidoras internacionais como Cannes", explica o jornalista sérvio Srdjan Jokanovic. "Para o nosso país, este evento permite que a nossa cinefilia possa se relacionar diretamente com as expressões criativas mais importantes do Presente. Tudo isso é feito sob a égide de nosso mais respeitado diretor, Kusturica, que se apaixonou por este território aqui, quando veio filmar na região, e investiu suas forças para erguer esta vila".
Tudo surgiu da experiência de Kusturica nas filmagens de "A Vida É Um Milagre", ganhador do Prêmio do Sistema Nacional de Educação da França, em 2004. A história de amor entre um casal mucho loco, fraturado pela guerra entre sérvios e bósnios, é marcada pela presença de uma jumentinha que empaca na linha do trem que cruza a cidade. O tom fabular daquela trama dá o tom de Küstendorf, na decoração hipercolorida dos chalés e da capelinha local, assim como num café onde é possível comprar doces feitos como coco e chocolate.
Respira-se cinema em cada canto de Küstendorf, que exibe clássicos restaurados numa salinha de projeção chamada Cine Stanley Kubrick, em tributo ao realizador de "2.001 - Uma Odisseia No Espaço' (1968). Hoje, a atração lá é "Sindicato de Ladrões" (1954), que completa 70 anos. O restaurante local, que serve pratos típicos como Urnebes (queijo branco com especiarias como páprica), é chamado de Visconti, em referência ao cultuado diretor de "O Leopardo" (1963). O cardápio de hoje deve ter salada de beterraba, risoto de legumes e presunto defumado.
No sábado, quando o evento chega ao fim, vai orlar sessão de "8½" (1963) neste sábado, numa comemoração ao legado do realizador Federico Fellini (1920-1993).
Será exibido ainda "Disco Boy", de Giacomo Abbruzzese, produção laureada com o Prêmio de Contribuição Artística na Berlinale de 2023, coroando a fotografia de Hélène Louvart. Mas essa sessão será em outra sala, chamada Damned Yard, cujo nome é uma alusão ao romance "O Pátio Maldito", de Ivo Andric (1892-1975), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1961, e encarado como um patrimônio artístico dos povos que um dia integraram a Iugoslávia. É nela que se passa a competição oficial de Küstendorf, feita só de curtas-metragens. O programa inicial reúne: "I Promise You Paradise", de Morad Mostafa; Hikuri, de Sandra Ovilla León; "On The Silk Road", de Sherzod Nazarov; "Silhouette", de Savva Dolomanov; "Duck Roast", de Jelica Jerinic; "Violet Country", de Mikhail Gorobchuk. O segundo programa inclui "Lemon Tree", de Rachel Walden; "Short Cut Grass", de Davi Graso; "Bye, Bye Bowser", de Jamin Baumgartner; "The Last Shift", de Askr Unaev; e "9-5", de Masa Sarovic. Já o último bloco das curtas traz "Highway of a Broken Heart", de Nikos Kyritsis; "Madden", de Malin Ingrid Johansson; "mise à nu", de Simon Maria Kubiena e Lea Marie Lembke; "Shanti", de Vivek Rai; "Only The Devil Hates Water", de Lidija Mojsovska; e "The Creature", de Damian Kosowski.
Quem vencer a competição deixará a Sérvia sob os auspícios (e o endosso) de Kusturica.