Compromisso estético

Prestes a filmar novamente, baseado em Dostoiévski, o aclamado cineasta sérvio Emir Kusturica finaliza seu festival anual, afaga Lula e faz um balanço sobre a América Latina

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O cineasta sérvio Emir Kusturica criou nas montanhas de seu país um festival que respira autoralidade

Programado para voltar aos sets de filmagem ainda este ano, conforme o roteiro de seu novo longa-metragem ("Crime no Punishment") estiver finalizado, o sérvio Emir Kurturica cumpriu mais uma missão, em seu projeto estético de resguardar a dimensão ritualística do cinema autoral. A sensação de dever cumprido se impôs quando ele finalizou a 17ª edição do Festival de Küstendorf, no sábado.

"Meu cuidado maior é permitir que cineastas iniciantes e artistas com uma obra já consagrada possam ter seus filmes projetados com uma qualidade à altura do investimento pessoal neles depositado", disse Kusturica ao Correio da Manhã, no chalé onde habita no resort onde o evento acontece, num resort na vila de Mokra Gora, no noroeste da Sérvia, na fronteira com a Bósnia, a três horas de Belgrado. "Por aqui, temos algo em comum com o Brasil e a Argentina: estamos sempre sendo submetidos a situações que nos obrigam a lutar para sobreviver e somos muito bons em futebol, ainda que não com a unidade alcançada pelos times de vocês".

Aos 69 anos, o multiartista foi laureado duas vezes com a Palma de Ouro de Cannes, confiadas a ele em reconhecimento à excelência de sua direção em "Quando Papai Saiu Em Viagem de Negócios", de 1985, e em "Underground - Mentiras de Guerra", de 1995. Na ativa nas telas desde 1978 (ano de seu filme de estreia, o curta "Guernica"), ele publicou livros de memórias e de narrativas ficcionais ("Death is an Unverified Rumour", "Étranger Dans Le Mariage" e "Why Did I Need This") e excursionou o mundo tocando guitarra e cantando com sua banda: The No Smoking Orchestra. Quando filmou "A Vida É Um Milagre" (2004), ele conheceu bem a região onde instalou sua Kusturicalância.

Hoje está construindo um resort na Bósnia, chamada Andrictown, em tributo a Ivo Andric (1892-1975), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1961, e encarado como patrimônio artístico dos povos que um dia integraram a Iugoslávia.

"O que eu vivi em Sarajevo deve ficar na memória, passou", diz o cineasta, numa alusão aos conflitos políticos dos Balcãs.

Ele enxerga semelhança entre os combates que encheram de sangue as fronteiras da Sérvia e os múltiplos problemas enfrentados pela América Latina, continente que descobriu por meio da literatura, nas páginas de autores como Gabriel García Márquez (1927-2014). É leitor também de Machado de Assis (1839-1908), cujos contos integram uma antologia latina nas prateleiras de sua biblioteca em Küstendorf. O amor dele pelo povo sul-americano se fez notar em dois de seus filmes mais famosos dos últimos 15 anos: "Maradona por Kusturica" (2008) e "El Pepe, Uma Vida Suprema" (2018), sobre octogenário líder uruguaio Pepe Mujica.