Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Minha Irmãe e Eu': O cinema reaprende a sorrir

Amparado no carisma de Ingrid Guimarães e Tatá Werneck, 'Minha Irmã e Eu' foi o filme mais visto pelos brasileiros no primeiro trimestre | Foto: Divulgação

Depois de "Barbie" ter oferecido ao humor um sopro de revitalização, numa linha sociológica e comportamental, parece que a graça voltou a encontrar seu lugar no mercado audiovisual para tela grande. Orçado em US$ 25 milhões, apoiado numa receita de doçura nada moralista, "Todos Menos Você" ("Anyone But You"), de Will Gluck, faturou cerca de US$ 125 milhões.

O belo enredo que tem rouba risos e suspiros de plateias de boa parte do planisfério cinéfilo, ao narrar a farsa armada entre uma ex-estudante de Direito, Bea (Sydney Sweeney), e um financista, Bem (um brilhante Glen Powell). Eles se conhecem numa cafeteria, flertam, passam uma noite juntos, mas, pela manhã, ela sai de fininho, deixando o rapaz com uma péssima impressão. Arrependida, ela volta à casa dele, mas acaba ouvindo o sujeito defini-la como "só mais um contratinho". Nasce ali um repúdio mútuo que se acentua quando os dois se esbarram na preparação para um casamento. A irmã dela vai se casar com a melhor amiga dele. Todos querem vê-los juntinhos. A fim de sossego, a dupla finge ser um casal em formação, num processo que convida a um beijo à vera - e rende muita piada boa.

A arrecadação mastodôntica do novo longa-metragem do realizador de "A Mentira" (2010) e de "Amizade Colorida" (2011) prova que, no circuito exibidor, a comédia ainda pode ser a maior diversão. Tatá Werneck e Ingrid Guimarães já haviam sinalizado isso na virada do ano.

Dirigida por Susana Garcia, a Midas por trás de "Minha Mãe É Uma Peça 3" (2019), o hilário "Minha Irmã e Eu" vai chegar à marca de dois milhões de ingressos vendidos num estalar de dedos.

Da pandemia até hoje, ou seja, desde o lockdown inicial de março de 2020, essa saga fraterna é o título brasileiro de maior arrecadação em circuito, tendo o metafísico "Nosso Lar 2 - Os Mensageiros" como seu principal rival.

São filmes atentos aos pleitos da correção política e das lutas pela equidade dos novos tempos (e dos velhos também), mas não desgrudam de um receituário testado (e aprovado) no qual rir é o melhor remédio. Desde os curtas de Charles Chaplin (1889-1977), a indústria sabe que uma boa gargalhada pode fidelizar pagantes e gerar faturamentos altos. No Brasil, apesar de um hiato provocado pela coronavírus, tramas cômicas sempre lotaram salas. Na França, também, vide os 20 milhões de pagantes contabilizados por "Intocáveis" (2011) e por "A Riviera Não É Aqui" (2008). Mas Hollywood não colheu boas safras financeiras na seara do sorriso do início da década passada para cá. "Todos Menos Você" é uma baita (e bela) exceção, da mesma forma que o já citado "Barbe", de Greta Gerwig, hoje um dos títulos mais cotados ao Oscar de 2024, a ser entregue no dia 10 de março.

Sim, o filme de ficção sobre a boneca mais famosa da História é uma comédia e contabilizou US$ 1,4 bilhão. Porém, sua realizadora, Greta, fez o filme para higienizar Hollywood dos vícios sexistas de outrora, notabilizando-se mais como um tratado contra violências de gênero, num pleito avesso à cultura machista, do que como narrativa de Kkkkk ou Hehehe convencionais. É um modo de rir mais atento, reflexivo, assumidamente politizado e necessário. Já "Todos Menos Você" tem muitos desses atributos, mas conversa com códigos de outrora, e muito bem. Códigos há tempos vencidos.

Antes de que você, leitora ou leitor, fale do cultuado "Se Beber, Não Case" - que custou US$ 35 milhões, faturou US$ 469 milhões e ainda papou o Globo de Ouro de Melhor Filme Cômico -, tenha cuidado em sua afirmação. O longa-metragem que consagrou o diretor Todd Philips é de 2009, e suas duas continuações, menos notáveis, de 2011 e 2013. Ou seja, a última vez em que um estúdio hollywoodiano viu uma trama cômica driblar a concorrência dos blockbusters de super-heróis, de animações Pixar e de aventuras à la "Transformers" ou "Top Gun: Maverick" foi em 2012, quando "Ted", de Seth Macfarlane, que custou US$ 50 milhões, faturou US$ 549 milhões pelo mundo afora.

Fora isso, afogada no politicamente correto, a comédia americana naufragou. Os milhões que o gênero registrava nos anos 1980, sendo picante ("A Última Festa de Solteiro") ou abilolado ("Corra Que a Polícia Vem Aí!"), e nos anos 1990, com grifes estelares (caso de Jim Carrey, em "Débi & Lóide" ou "O Mentiroso") ou com debates comportamentais (caso de "American Pie"), sumiram. Houve alguma migração para as séries de TV e para o streaming, vide o genial "Não Olhe Para Cima" (2021), que tinha Jennifer Lawrence ao lado de Leonardo Di Caprio, mas sem a mesma repercussão.

Em 1998, um ator de TV, conhecido pelo humorístico "Saturday Night Live", Adam Sandler, deu um pontapé em seus concorrentes de prestígio (Carrey e Robin Williams) e emplacou um sucesso inesperado: "O Rei da Água". Dali pra diante, tudo o que ele fez entre 1999 ("O Paizão") e 2011 ("Esposa de Mentirinha") explodiu no gosto popular e passou da marca de US$ 100 milhões na arrecadação. Até uma obra-prima adorada pela crítica ele emplacou: "Como Se Fosse A Primeira Vez" (2004). Mas com a recepção áspera a "Cada Um Tem a Gêmea Que Merece", lançada aqui no carnaval de 2012, Sandler percebeu que era hora de mudar. Sai do cinema e passou a ser um astro exclusivo da Netflix. No streaming, ele ampliou sua força com títulos como "O Halloween do Hub" (2020) e "Mistério no Mediterrâneo" (2019), este com a estrela da gargalhada Jennifer Aniston. Até um cult (sério) ele protagonizou: "Joias Brutas", em 2019. Mas o êxito contínuo de Sandler já não inclui as salas exibidora, embora este ano ele vá à Berlinale com "Spaceman" - um drama.

Como Sandler, Ben Stiller, que levou multidões ao circuito com "Entrando Numa Fria" (2000 -2010) e "Quem Vai Ficar Com Mary" (1998), também migrou pra plataformas. "Missão Madrinha de Casamento" (2011) foi uma comédia milionária, que chegou a disputar estatuetas do Oscar. Fez de Melissa McCarthy uma estrela. Mas nem ela consegue formar filas nas porta dos cinemas pra ver uma narrativa engraçada.

Tem comédia padrão biscoito fino, de paladar agridoce, sendo (bem) feita ainda nos EUA. "Os Rejeitados" ("The Holdovers"), de Alexander Payne, é uma delas. Deve render um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante para Da'Vine Joy Randolph e um de Melhor Ator para Paul Giamatti. Mas não se trata de uma trama para arrebatar fortunas. Projetos com esse potencial hoje são raros nos Estados Unidos.

Há uma razão histórica para essa mudança comportamental. Historicamente, toda a vez que o mundo entra num conflito bélico coletivo, como a I e a II Guerra, a comédia sobe. A carreira de um gênio como Frank Capra (1897-1991) foi fruto desse estado de coisas, em que a risada serve de analgésico ao temor. "A Felicidade Não Se Compra", lançada por Capra em 1946 cresceu no imaginário cinéfilo mundial no pós-guerra, como refluxo dos horrores da batalha contra Hitler, evocando a necessidade de um filme de celebração do amor familiar. Mas hoje, mesmo com o horror do conflito Israel x Palestina e a Guerra da Ucrânia, o assombro do planeta passa pelas vias econômicas, por colapsos financeiros que alimentam a presença de políticos conservadores no Poder. Em tempos assim, como se viu, por exemplo, no crack da Bolsa de 1922, a comédia cai e os filmes de monstro e os suspenses noir (pautados na ambiguidade moral) crescem. É o que vivemos hoje em Hollywood. É contra esse percalço da História que "Todos Menos Você" Está enfrentando.

Na França, que adora comédias, a aposta do ano é "L'Amour Ouf", de Gilles Lellouche, ator e diretor campeão de bilheteria. Ele regressa ao circuito narrando os percalços de um casal formado por Adèle Exarchopoulos e François Civil. Estreia em outubro. "L'Empire", que valeu a Bruno Dumont uma indicação ao Urso de Ouro da Berlinale 2024 (15 a 25 de fevereiro) pode ser uma surpresa para os exibidores também. É uma paródia de "Star Wars". O engraçadíssimo Fabrice Luchini está em seu elenco.

No Brasil de "Minha Irmã e Eu", a partir do êxito de "Se Eu Fosse Você", que vendeu 3,6 milhões de ingressos em 2005, a comédia encontrou espaço nobre nas telonas, inventando até um subgênero pra si, a neochanchada, caracterizada por seu humor escancarado, sem sutileza, graficamente explícito nas piadas, ao analisar as peripécias das classes C e D que emergiram na primeira Era Lula. Uma série de fenômenos, como "Até Que a Sorte Nos Separe" (2012-2015) ou "De Pernas Pro Ar" (2010-2019), consagraram novas fórmulas do riso. Em 2013, Paulo Gustavo (1978-2021) foi responsável por uma revolução nos cinemas, desafiando tabus do conservadorismo nacional, ao aparecer vestido de mulher à frente da franquia "Minha Mãe É Uma Peça". O primeiro rendeu 4.582.788 tíquetes. O segundo foi visto por 9.307.612 pagantes. O terceiro, citado no início deste texto, superou todas as expectativas dos analistas de mercado e somou 11.608.254 espectadores.

Mas aí veio a pandemia e, desde que os cinemas reabriram, além de "Minha Irmã e Eu", só duas comédias fizeram sucesso à altura do esperado: "Tô Ryca! 2" (2022), com Samantha Schmütz, e "Desapega! O Filme", com Maisa e Glória Pires. Nos streamings, as parcerias do roteirista Paulo Cursino com o diretor Roberto Santucci e o ator Leandro Hassum, tipo "Tudo Bem no Natal Que Vem", segue brilhando, vide "Meu Cunhado É Um Vampiro". Aliás, Cursino e Santucci voltam este ano com "Os Faroeiros 2", em março. No mesmo mês, "Férias Trocadas" - com Edmilson Filho, Carol Castro e Aline Campos - pode bombar também e inflar as poltronas de pagantes, assim como "Evidências de Amor", com Fábio Porchat e Sandy. Espera-se que "Mallandro: O Errado Que Deu Certo", agendado para maio, abra a porta dos desesperados por milhões e devolva ao nosso cinema o gostinho de destronar Hollwyood, à força do carisma de Sérgio Mallandro.

Que boas gargalhadas oxigenem o cinema daqui até dezembro.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.