Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Petzold em chamas

Afire | Foto: Janus Films/Divulgação

Desde setembro, quando foi jurado do Festival de San Sebastián, a carreira do realizador alemão Christian Petzold ficou focada no lançamento de seu filme mais recente, o badalado "Afire", em salas de países da América Latina, como o Brasil, e no streaming da Europa. Hoje, a produção faz parte do cardápio da plataforma digital do Telecine e na Reserva Imovision. Pode ainda ser alugado na Apple TV, no YouTube, no Google Play e na Amazon Prime.

Em fevereiro do ano passado, esse drama cheio de louvor à literatura deu a ele o Grande Prêmio do Júri da Berlinale, evento germânico que, na edição deste ano, a de número 74º, vai contar com a presença dele como jurado. Esse convite para que ele integre o coletivo destinado a julgar os concorrentes ao Urso de Ouro de 2024 - presidido pela atriz Lupita Nyong'o, oscarizada por "12 Anos de Escravidão" - ressalta a relevância de Petzold como o diretor autoral de maior relevância de seu país na atualidade. Além de Lupita e dele, o júri da Berlinale (agendada de 15 a 25 de fevereiro) reúne a diretora Ann Hui (Hong Kong/ China), o ator e realizador Brady Corbet (EUA), o cineasta Albert Serra (Espanha), a atriz e realizadora Jasmine Trinca (Itália) e a poeta Oksana Zabuzhko (Ucrânia). O rol de produções em concurso é farto.

Entram em disputa cineastas das mais variadas gerações. Tem sangue jovem na lista em competição, como a franco-senegalesa Mati Diop, a italiana Margherita Vicario e o mexicano Alonso Ruizpalacios. Tem também medalhões: vide os franceses Bruno Dumont e Olivier Assayas e o sul-coreano Hong Sangsoo. A própria Alemanha sai em campo com o veterano Andreas Dresen. Entre as promessas sul-americanas encaradas como potenciais competidoras, foi selecionada uma produção colombiana que assume um hipopótamo como protagonista: "Pepe", de Nelson Carlos De Los Santos Arias. Ou seja: o que não falta é diversidade, palavra que Petzold muito valoriza.

"O afeto nos dá uma identidade de pertencimento", disse Petzold ao Correio da Manhã num papo via telefone, durante a produção de "Afire", que ganhou, entre muitos troféus, a láurea de Melhor Filme no Festival de Palic, na Sérvia.

Já com filme novo em gestação, Petzold nasceu há 63 anos na cidade de Hilden e iniciou em 1988 uma das carreiras mais sólidas de sua pátria entre realizadores que viraram grife. "Undine" (laureado com Prêmio da Crítica na Berlinale de 2020) e "Jericó" (indicado ao Leão de Ouro em 2008) consolidaram sua notoriedade como cineasta com verve de autor.

"Discutir identidade, a partir do cinema, é um processo antigo, que eu vejo até em Hitchcock", diz o cineasta. "A Alemanha é um país assolado por uma culpa histórica que nos é imputada pelo que se passou durante o nazismo. Mas durante os bombardeios que se seguiram ao fim da II Guerra, em 1945, destruíram não só nossos prédios: acabaram com a nossa cultura, com a nossa moral e com a nossa ética. Acabaram com a nossa sensação de pertencimento. Eu faço parte de uma geração de diretores que busca as histórias que construíram essa grande História em que nos rodeamos de fantasmas. Por isso, nos meus filmes, há personagens ausentes, pessoas que desaparecem, mas deixam seu espectro".

Embalado pelo hit "In My Mind", do grupo vienense Wallners, o novo longa de Petzold estreou no Brasil via Imovision. A distribuidora de Jean Thomas Bernardini foi responsável por trazer ao Brasil os cults anteriores desse artesão autoral germânico. Alguns deles foram lançados na grade da plataforma digital da distribuidora, o Reserva Imovision - e seguem por lá: "Bárbara" (2012), "Phoenix" (2014), "Yella" (2007), "A Segurança Interna" (2000) e o já citado "Jericó". São longas que ilustram sua relação de intertextualidade com a literatura, que se depura a cada novo título.

"Meu esforço é tirar a História de uma inércia arquetípica, é proteger os personagens do lugar comum, é fomentar uma nova perspectiva para a imagem,", disse Petzold, em Berlim.

Três anos após a consagração de "Undine", o realizador extrai mais uma atuação magnífica de sua habitual parceira, Paula Beer, tendo dado à disputa pelo Urso de Ouro de 2023 seu roteiro mais engenhoso, numa ode à prosa literária. A atriz é a misteriosa hóspede de uma casa no litoral, numa fase alta de calor, onde um aspirante a escritor, Leon (Thomas Schubert), anseia por uma avaliação de seu editor. Mas há incêndios ao redor, na mata, acossando os moradores e visitantes. Haverá um incêndio dentro dele também, mexendo com sua incapacidade de amar e sua falta de empatia.

"Num universo repleto de narrativas de pessoas que precisam se esconder e se reinventar, construído pelo cinema ao longo de décadas, o amor aparece sempre como um norte para os personagens", explica Petzold, que vai dar uma palestra ao público de San Sebastián sobre sua estética. "Percebo o mundo à minha volta, e sua sensibilidade, pelos ruídos que ele produz. Quando um cineasta procura locações onde filmar, ele, de costume, preocupa-se com o visual e busca imagens de referência, confiando ao olhar o desenho de sua narrativa. Não por acaso, realizadores fazem esse processo acompanhados de um diretor de fotografia, para mapear as pistas visuais do que planeja contar. No meu caso, a engenharia de som é essencial para que eu pense um filme, tanto quanto a referência visual. Por isso, quando encontro um lugar, eu fecho os olhos e tento ouvir o que esse espaço tem. Preciso ouvir o que esse lugar expressa, para que ele me conte sua história".

 

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