Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Sublime criatura

Hanna Schygulla, a grande musa de Rainer Werner Fassbinder, de destaca em 'Pobres Criaturas' | Foto: Divulgação

Quando Hanna Schygulla comemorou seus 80 anos, no Natal do ano passado, em pleno 25 de dezembro, "Pobres Criaturas" ("Poor Things") estava iniciando sua caça às onze indicações ao Oscar que hoje fazem de delirante fábula erótica do cineasta grego Yorgos Lanthimos atração obrigatória no circuito exibidor. O Leão de Ouro de Veneza endossa sua potência estética nas telas.

Embora seu foco esteja na estonteante atuação de Emma Stone no papel de Bella Baxter - uma suicida volta do mundo dos mortos numa experiência científica digna de Frankesntein -, o filme traz uma legião de coadjuvantes de peso. É esse o caso da diva alemã de origem polonesa, em luminosa participação no papel de Martha Von Kurtzroc, uma passageira de um navio que compartilha com Bella seu cinismo.

"Sombras sempre existiram nas relações de poder, e sempre existiu a manipulação. Perseverar é resistir", disse a atriz ao Correio da Manhã, em meio às filmagens de "Pobres Criaturas", no Festival de San Sebastián.

À época, Hanna também filmava "Yunan", de Ameer Fakher Eldin. Nele, um escritor árabe exilado viaja para uma ilha remota no Mar do Norte para se suicidar. Decide se alojar num modesto hotel gerido por uma mulher já idosa, cuja afetividade calorosa faz o autor despertar para a vida e pata novos desejos. É uma prova do "perseverar" de que Hanna fala.

"A arte não existe para produzir êxtase, nem para nos maravilhar. A arte existe para nos ensinar que ninguém cresce sem feridas", disse Hanna. "Fiz grandes filmes centrados na certeza de que tudo o aquilo que desejamos, uma hora, vai se realizar, trazendo consigo também a realização de tudo o que não esperamos, como é o caso da dor".

Lá pelo fim dos anos 1980, a TV Globo exibiu "Lili Marlene" (1981) no horário nobre, numa sessão do "Cinema Especial", com Hanna a falar em versão brasileira (quase sempre Neuza Azevedo era sua dubladora), mas recorrendo ao alemão nas sequências em que a estrela germânica canta - e muito. O canto de Hanna foi um dos mais potentes do cinema europeu dos anos 1970 (quando conquistou o Urso de Prata de Melhor Atriz, na Berlinale, por "O Casamento de Maria Braun") e nos anos 1980, quando ela saiu laureada de Cannes, por sua atuação em "A Estória de Piera", de Marco Ferreri (1928-1997). Desde sua estreia, em 1969, ela filmou de tudo, até com Chuck Norris, com quem contracenou no thriller "Comando Delta" (1986). Mas foi com Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) que fez seus maiores sucessos, entre eles "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", que completou 50 anos em 2022, com direito a um remake particularíssimo. O filme ganhou uma releitura da trama (escrita inicialmente por Fassbinder como peça) com direção de François Ozon. O título: "Peter von Kant". Exibido na abertura do Festival de Berlim de 2022, o longa pode ser visto hoje na Amazon Prime. Ele traz Hanna no papel da mãe de um cineasta polemista (papel de Denis Ménochet), que entre em ruína ao se apaixonar por um garotão.

"Fassbinder foi uma criança que cresceu cercado por livros de arte, lendo sobre Rembrandt em vez de folhear quadrinhos do Pato Donald", lembra Hanna, ao falar do diretor com quem mais recorrentemente trabalhou. "Ele filmou uma série sobre "Berlim Alexanderplatz" (romance de Alfred Döblin publicado em 1929) porque aquele livro era parte de seu repertório de leitura. A cabeça dele esbanjava referências pictóricas. Ele era muito culto e sabia ser generoso, ao mesmo tempo em que agia como um tirano. Ele era daqueles artistas que nunca poderiam estar satisfeitos".

Em 2024, Hanna completa 55 anos de carreira como atriz. Sua trajetória profissional começa em 1969, com três filmes nu só ano, entre eles "O Amor é Mais Frio Que a Morte", que, à sua época, concorreu ao Urso de Ouro de Berlim. Em cinco décadas e meia de trajetória profissional, ela segue otimista em relação ao papel transcendente da arte.

"Tenho participado de histórias sobre colapsos afetivos, e dores de amor, que olham para a vida buscando representar aquilo que nos desestabiliza", disse Hanna. "Sinto verdade num cinema que respeita nossas angústias".

 

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