Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Grife à moda espanhola

O cineasta espanhol Albert Serra | Foto: Divulgação

 

Disponível no catálogo da MUBI e no da Amazon Prime, streamings em que arrebanha novos fãs, "Pacifiction", produção eleita o Melhor Filme de 2022 pela enquete da revista "Cahiers du Cinéma" (a Bíblia do audiovisual) segue a render frutos para seu realizador, o catalão Albert Serra. No fim da semana passada, a Berlinale n° 74 anunciou a presença dele como jurado de uma competição que vai se estender de 15 a 25 de fevereiro. Esse convite para que ele integre o coletivo destinado a julgar os concorrentes ao Urso de Ouro de 2024 - presidido pela atriz Lupita Nyong'o, oscarizada por "12 Anos de Escravidão" - ressalta a relevância de Serra como um dos diretores autorais de maior relevância no Velho Mundo na atualidade. Além de Lupita e dele, o júri da Berlinale (agendada de 15 a 25 de fevereiro) reúne a diretora Ann Hui (Hong Kong/ China), o ator e realizador Brady Corbet (EUA), o cineasta Chrstian Petzold (Alemanha), a atriz e realizadora Jasmine Trinca (Itália) e a poeta Oksana Zabuzhko (Ucrânia). O rol de produções em concurso é farto.

"O cinema que me instiga é aquele que assume o Tempo como entidade a ser estudada a partir de uma mirada fotográfica avessa às convenções de narrativas comerciais", disse Serra, em entrevista ao Correio da Manhã na França.

Entram em disputa na Berlinale deste ano - sob o crivo do júri do qual o espanhol faz parte - cineastas das mais variadas gerações. Tem sangue jovem na lista em competição, como a franco-senegalesa Mati Diop, a italiana Margherita Vicario e o mexicano Alonso Ruizpalacios. Tem também medalhões: vide os franceses Bruno Dumont e Olivier Assayas e o sul-coreano Hong Sangsoo. A própria Alemanha sai em campo com o veterano Andreas Dresen. Entre as promessas sul-americanas encaradas como potenciais competidoras, foi selecionada uma produção colombiana que assume um hipopótamo como protagonista: "Pepe", de Nelson Carlos De Los Santos Arias. Ou seja: o que não falta é diversidade, palavra que Serra muito valoriza.

"Tenho formas de pensar a linguagem que passam por uma herança de meu país nas telas. Sou, sim, um cineasta espanhol, pela minha gênese pessoal, mas o meu cinema não está preso a paradigmas nacionais, nascendo de uma troca com a França, no desejo de expressar o mundo a partir de uma inquietação formal que não se defina meramente pela palavra, ainda que esta, quando aparece em cena, tem uma relevância, um sentido, um efeito", disse Serra ao Correio da Manhã em solo espanhol, durante o Festival de San Sebastián, em 2023.

Empatia é um termo sempre usado na diagonal, nas raias da opacidade, nas trocas formais, oficiais e (vez ou outra) afetivas retratadas em "Pacifiction", um exercício autoral visualmente virtuoso adulado pela "Cahiers du Cinéma". Essa estampa de qualidade do mais respeitado periódico do mundo cinéfilo transformou o que era uma potente dramaturgia sobre a ressaca política de um mundo de ideologias afogadas num acontecimento, aquilo que revistas como a "New Yorker" chama de talk of the town, "O" assunto da cidade. Muitas vezes essa bênção francesa da "Cahiers" erra, sacralizando bezerros de ouro. Em outras (as enquetes em que figuraram Bertrand Mandico, Maren Ade, os Irmãos Safdie, Patricia Mazuy, Ladj Ly e Kleber Mendonça Filho) acertos foram reconhecidos e atestados pela História, como se faz agora com o catalão Albert Serra, o responsável por uma "pacificação" nunca plena dos legados do colonialismo.

"Este é um mundo onde os códigos de valor com que devíamos respeitar o próximo naufragaram", disse o cineasta. "Não uso o roteiro com os atores. Eu converso com eles, cena a cena, para tentar que eles se guiem pelo sentimento que cada sequência proposta sugere".

Desde o obrigatório "A Morte de Luís XIV" (2016), com Jean-Pierre Léaud, Serra goza de um prestígio autoral singular na Europa, como porta-voz de almas alquebradas pela percepção de que o tempo histórico que validava suas potências beira o ocaso. Artur Tort, habitual diretor de fotografia de seus longas, jamais olha para uma corte, um ambiente palaciano ou pro mix de resorts e inferninhos retratado em "Pacification" em busca de lugares comuns de luxo e de suntuosidade. Existem várias moléstias na dramaturgia de Serra e o tédio é uma delas, quase sempre acompanhado de um certo esnobismo maquinal, ou seja, uma arrogância em relação aos processos de interação social e de trocas financeiras. Assim sendo, lirismo é algo que não lhe cabe, ainda que exista algo de lúdico no verdume das florestas da Polinésia Francesa onde a trama se passa. Mas a preferência de Serra é pelo que existe (ora) de arenoso e (ora) de lamacento na alma do personagem central daquele Éden em falência: um misantropo alheio à perseverança humana chamado De Roller, Alto Comissário da República no Taiti.

Para viver a figura enigmática, que é galã e monstro no mesmo corpo, operando como Jekyll pro neoliberalismo e Mr. Hyde para o discurso ecológico, Serra convocou um ator em estado de graça: Benoît Magiel. Premiado em Cannes, em 2001, por "A Professora de Piano", em duo erótico com Isabelle Huppert, Magimel transforma De Roller num Exu que flana por diferentes mundos (o de governantes poderosos, o de turistas milionários e o bas-fond do comércio sexual) buscando equilíbrio. Mas a ameaça de um conflito atômico, somada à fagulha de um benquerer que parecia impossível, vai tirá-lo do ponto morto. Seu despertar revela, com o olhar decadentista de Serra, que o bárbaro é sempre aquele que se civilizou. É um roteiro deslumbrante, defendido por um ator no apogeu de seu vigor cênico.

 

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