Aos receber o Grande Prêmio do Júri do Festival de Berlim de 2024, no sábado, o sul-coreano Hong Sangsoo voltou-se para o time de juradas e jurados presidido pela atriz Lupita Nyong'o e perguntou: "O que vocês viram no meu filme?". O cineasta de 63 anos, considerado hoje o mais prolífico realizador em atividade no planeta, com uma média de dois longas-metragens ao ano, não foi o único a levantar essa questão. "A Traveler's Needs", um dos 20 concorrentes do evento, não é o tipo de narrativa capaz de agradar com unanimidade.
Nada dele é. Mas é surpreendente a habilidade que Sangsoo (por vezes, seu nome é grafado Sang-soo ou Sang-Soo) tem criar, e não só na direção. Ele filma, escreve, fotografa, edita, compõe a trilha sonora e produz. Sua Jeonwonsa Film Co. Production consegue dar conta de sua estética enxuta.
"Filmo situações do dia a dia que são simples. Não preciso de efeitos especiais. Eu mesmo opero a câmera. Só preciso de alguém para captar o som. Com isso, o orçamento é pequeno. A montagem fica por minha conta também", disse Sangsoo ao Correio da Manhã antes das filmagens de "A Traveler's Needs", ao lançar "Lá Em Cima" ("Walk Up"), no Festival de San Sebastián na Espanha.
"Nem tudo o que aparece em cena precisa de uma explicação ou de uma conexão direta com a narrativa. Eu posso ser capturado pela imagem de um gato correndo, registrá-la e supor que faz sentido estético tê-la na edição de uma história que é absolutamente alheia àquele animal. Ele está ali só por fazer parte do mundo, por ter me oferecido um momento que, filmado, gera um sentido artístico".
No dia em que lançou "A Traveler's Needs" na Berlinale, sua protagonista, Isabelle Huppert, deu uma definição curiosa para o modo como ele trabalha. "Hong não trabalha com roteiro, nem com enredo definido. A gente vai criando no processo, em tramas bem-humoradas, mas carregadas de uma certa melancolia", disse a diva europeia, que trabalhou com ele antes em "A Câmera de Claire" (2017) e "A Visitante Francesa" (2012). "Neste novo encontro nosso, eu até levei a roupa da personagem. O problema foi ter que tomar o Makgeolli, uma bebida típica com aspecto de leite, doce, mas... forte. Eu não bebo... quer dizer, só bem pouco".
A fala de Huppert se refere a um ritual básico da obra de Sangsoo: seus personagens comem, bebem, fumam e falam... sem parar. Quase sempre tomam Soju, a Caninha da Roça da Coreia. Mas em "A Traveler's Needs", Iris, a personagem central, entorna esse tal vinho de arroz que se chama Makgeolli, gerado por meio de um processo de fermentação com uma taxa de álcool de cerca de 7%. Para entendedores (ou aqueles que estão habitados a beber): um copo parece inofensivo, mas… na segunda dose, derruba.
Em geral, os porres filmados pelo cineasta são em P&B, pois ele é um mestre do preto e branco. Nesse longa mais recente, a cor é onipresente.
"A alternância do preto e branco com imagens coloridas na minha filmografia não vem de uma tese racional. Nada do que faço vem. É mais uma reminiscência, o resquício de algo que me pede uma reação fílmica em P&B", disse Sangsoo ao Correio. "Cresci vendo clássicos do cinema. Eles eram sempre em preto e branco. Filmar assim evoca esse passado da minha relação com o cinema, por uma questão de afeto e não por um gesto esnobe, pra incorrer no dito 'filme de arte'. É uma escolha emotiva, que deve ser bem cuidada para não se estilizar".
A ideia de que ele tenha se estilizado tanto a ponto de se repetir chegou a ser comentada pelo curador daedição n°74 da Berlinale, o crítico Carlo Chatrian, ao anunciar o seu nome quando divulgou a programação: "Dizer que Sangsoo se repete e faz sempre o mesmo filme é não perceber sua grandeza". Fora a forma pouco usual de trabalha como o colorido (uma vez que sua fotografia parece lavada, sem tônus nas cores quentes), "A Traveler's Needs" reitera uma série de dispositivos do cineasta para explorar a psisuê de Iris, a professora de Francês vivida por Isabelle. A cada encontro com suas amizades coreanas, ela sai derrubada das bicadas que dá no Makgeolli. Fica alegre, fala mais do que deve e põe-se a acariciar amigos que estão acompanhados por figuras femininas. Iris só não perde a medida da sua limitação financeira. Ao voltar para casa com metade do dinheiro do aluguer, fica toda pimpona, a celebrar o seu feito. Fala dos seus bolsos meio vazios várias vezes, como justificativa para o devir educadora em que se enfiou, um tanto confusa em seus sentimentos.
"Filmar a palavra é filmar a sociabilidade", define Sangsoo. "É deixar que as pessoas se revelem sem performances, apenas deixando as palavras soltas. Escrever essas conversas exige de mim apenas uma adequação do que é dito ao perfil e à essência de quem o diz. É uma questão de construção de personagem. Os personagens são a partir do que dizem. Dizer é ação".