Especiarias mexicanas

Dividindo opiniões por sua contundência sociológica, o longa 'La Cocina', de Alonso Ruizpalacios, vira o filme mais debatido da disputa pelo Urso de Ouro em 2024, até agora

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Julia (Rooney Mara) vê uma das iguarias que o The Grill vai servir em 'La Cocina', de Alonso Ruizpalacios, que pode ser laureado com o Urso de Ouro

Celebrado afetuosamente entre os brasileiros por suas telenovelas e pelo seriado do Chaves, o México nunca ganhou o Urso de Ouro da Berlinale, mesmo tendo emplacado por lá sucessos de crítica, como "Totem" (2023), de Lila Avilás.

Aliás, o cobiçado troféu só veio para a América Latina com Walter Salles e José Padilha (por "Central do Brasil" e "Tropa de Elite") e para a peruana Claudia Llosa, com "A Teta Assustada", em 2009.

Mas um nervoso retrato da rotina de um restaurante repleto de imigrantes pode mudar o placar de um país que vem colecionando Oscars com diretores como Alejandro González Iñarritu, Guillermo Del Toro e Alfonso Cuarón. "La Cocina" pode ser o filme da virada mexicana na Berlinale, na competição de 2024, que vai até sábado, quando o júri presidido pela atriz queniana Lupita Nyong'o anuncia os vencedores. A direção é de Alonso Ruizpalacios. Em 2018, ele saiu do festival alemão premiado pelo roteiro de "Museu" e, em 2021, conquistou o Prêmio de Contribuição Artística, dada à montagem de seu 'Um Filme de Policiais", lançado pela Netflix. Nenhum dos dois chega aos pés de seu novo e exuberante longa-metragem, que é falado parcialmente em Inglês, é ambientado em Nova York, mas se concentra na vida de migrantes hispânicos num ambiente de xenofobia.

"Venho da classe média do México, filho de um médico", disse Ruizpalacios ao Correio da Manhã, quando "La Cocina" ainda estava no papel. "Não saberia falar das favelas do meu país, de modo a abordar com verossimilhança as relações de opressão em ambientes periféricos, mas tenho interesse em falar do mundo que conheço, da realidade mexicana que me cerca. O México é uma nação muito complexa e eu quero celebrá-la".

Neste momento em que a série "The Bear", com Jeremy Allen White, faz tanto sucesso (no streaming) ao explorar as tensões de quem vive do verbo cozinhar, "La Cocina" consegue dar uma abordagem inusitada (e sociopolítica) ao tema, apoiada numa engenharia de filmagem ousada. Numa aeróbica de câmera, que lembra o 'Birdman", de seu conterrâneo Iñárritu, o filme de Ruizpalacios aposta num preto e branco contínuo, temperado de chiaroscuros pela[U1] cinematografia de Juan Pablo Ramírez, à exceção de um ou dois efeitos (azulados) que se fazem notar na tradução da crise mental de um de seus personagens centrais, o cozinheiro Pedro. É esse o nome do personagem que pode dar ao ator Raúl Briones os mais variados troféus, de Berlim em diante.

Poço de carisma, Pedro é uma das estrelas dos bastidores do sempre lotado The Grill, casa onde se come o melhor Frango Marsala de NY e o "podrão" mais gourmetizado dos EUA. No fogão e na grelha, o anti-herói de Ruizpalacios (destaque de uma narrativa coral, na qual todo personagem tem seu solo) está sofrendo. Ele vive uma convulsão afetiva, ao saber que sua namorada, Julia (papel de Rooney Mara, de "Carol"), atendente desse empório gastronômico, quer fazer um aborto.

Sempre tenso, o chef vivido por Lee R. Sellars, líder e uma tropa de funcionários de diversos cantos do mundo (sobretudo de Gauadalajara, Acapulco e Cidade do México) carece de empatia. Contudo, Julia se sai bem com ele e com as colegas, fazendo um truque inusitado com os cigarros que não lhe saem da boca. O problema é que a panela de pressão emocional de Pedro não dá conta das turras em que vive com ela, com o patrão e com os vetores de exclusão que o cercam. Uma acusação de roubo só piora sua vida, mas faz "La Cocina" entrar numa espiral sociológica naturalista que ferve, a temperaturas altas, todas as angústias latinas da atualidade. Teve gente que se incomodou com a crueza com que o filme expõe corpos e com a selvageria de sua edição. Mas reside nela sua potência plástica.

O filme mais frustrante da competição berlinense (até agora) veio da França: a comédia "L'Empire", de Bruno Dumont, que brinca com 'Star Wars", falando de uma guerra intergaláctica. A mesma França presenteou a disputa pelo Urso de Ouro com uma joia amorosa: "Hors du Temps", de Olivier Assayas, que revisita os dias da pandemia ao narrar as confusões de dois casais numa casa de campo. Estima-se que o colombiano "Pepe", de Nelson Carlos De Los Santos Arias, a ser exibido esta noite, tendo um hipopótamo como protagonista possa virar o jogo na briga pelo Urso de Ouro, ao falar da rotina de um animal expatriado. É um documentário com tons fabulares, assim como o arrebatador "Dahomey", que tem tudo para render a láurea de Melhor Direção para a franco-senegalesa Mati Diop. É uma triagem de relíquias do Benin surrupiadas durante a colonização.

Como ainda tem filme em concurso até sexta, muita coisa (boa) pode surgir em Berlim.