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Um Oscar contemporâneo

Oppenheimer | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Domingo é dia de Oscar e "Oppenheimer" tem tudo para limpar os trilhos da vitória na festa anual da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, incluindo o troféu de Melhor Filme. Ensaio sobre a corrupção nos meandros do Poder, a partir dos bastidores da criação da bomba atômica, nos anos 1940, a cinebiografia do físico Julius Robert Oppenheimer (1904-1967) concorre a 13 estatuetas pela instituição fundada em 1927, composta por cerca de 9,9 mil associados. O faturamento dessa superprodução de US$ 100 milhões, dirigida pelo inglês Christopher Nolan (de "Interestelar"), foi de US$ 957 milhões. É a terceira maior receita de faturamento (em escopo mundial) de venda de ingressos em 2023, quando o campeão foi "Barbie", de Greta Gerwig - que arrecadou US$ 1,4 bilhão. A saga antissexista da boneca mais famosa do mundo foi indicada em oito categorias, e tem tudo para levar as láureas de Figurino e Canção, dada a força de "What Was I Made For?", de Billie Eilish e Finneas O'Connell. Ambos os longas-metragens - o de Greta e o de Nolan - formaram, em circuito exibidor, a dobradinha chamada "Barbenheimer", numa sinergia revolucionária para os padrões mercadológicos de uma indústria enfraquecida pela pandemia. Estrearam no mesmo dia. Mesmo sendo diversos - radicalmente - na forma e no conteúdo, ajudaram-se, mantendo as salas lotadas, ainda que com públicos de perfis diferentes (sobretudo em termos etários). Deram ao audiovisual aquilo de que ele mais carece: cinemão, dos mais populares, porém, com grife autoral.

Embora não tenha cifras tão altas, mas, ainda assim, seja um sucesso mastodôntico para as contas de seu país (a França), o resfolgante "Anatomia de uma Queda", ganhador da Palma de Ouro de Cannes, em maio passado, também se esgueira por esse veio de espetáculos de alta aceitação popular, mas de vertigens autorais em sua medula narrativa. Assim como "Barbie", o misto de drama familiar e thriller de tribunal dirigido por Justine Triet é um ataque ao sexismo. Tal qual "Oppenheimer", ele utiliza matrizes de gênero clássicas, dando a elas moldes formais e debates contemporâneos. Vendeu 1,6 milhão de ingressos em sua pátria natal, que preferiu indicar "O Sabor da Vida", de Tran Anh Hùng, com Juliette Binoche (na pele de uma cozinheira empoderada do século XIX), como seu candidato oficial aos votos da Academia. O motivo: Justine protestou contra as incongruências econômicas do governo francês em relação a políticas culturais. Mesmo sem o endosso de sua pátria, contabiliza fortunas (US$ 32 milhões) e é o favorito ao Oscar de Melhor Roteiro Original.

No âmbito do Roteiro Adaptado, "Oppenheimer" (inspirado no livro "American Prometheus", de Kai Bird e Martin J. Sherwin) deve perder para "Ficção Americana", que virou "O" assunto das redes sociais, ao ser lançado aqui via Amazon Prime. A direção do cineasta estreante Cord Jefferson (um prolífico roteirista de séries de TV e streaming) se deleita no timbre satírico do romance "Erasure", de Percival Everett. Indicado a cinco Oscars, essa ácida comédia de tintas políticas ganhou o prêmio de júri popular do Festival de Toronto, uma láurea que define futuros sucessos. Inédito em nossas salas de projeção, a produção traz Jeffrey Wright (dublado aqui por Duda Ribeiro) no papel do misantrópico Thelonious Ellison, professor de Literatura e escritor de pouca notoriedade. O boom de romances sobre causas raciais e pautas identitárias fazem com que ele escreva um livro ferocíssimo, fingindo ser um ex-presidiário que investe num relato de autoficção. O êxito de sua fake novel tira sua paz no momento em que ele reconfigura sua vida afetiva. É um aríete antirracista.

Pode se dizer o mesmo da atuação de Lily Rose Mary Gladstone, descendente de indígenas Nimíipuu e Pikunis, em "Assassinos da Lua das Flores" que deve fazer dela a ganhadora do Oscar de Melhor Atriz. Ela sintetiza todo o trauma da extinção gradual de uma população, os Osage, em sua interpretação. No longa, hoje na grade da Apple TV, Mollie (Gladstone) faz parte de um contingente de Osages que ficou rico com a descoberta de petróleo em suas terras, mas padece de diabetes, sem conseguir dar conta do mal-estar que sente. Padece também da dor diante das mortes de seus conterrâneos. Martin Scorsese, realizador desse faroeste indigenista, uma vez mais deve sair sem outras láureas, como aconteceu com seu "O Irlandês', em 2020.

Existe um caminho contra a intolerância racial também na recorrente consagração de Da'Vine Joy Randolph, favorita absoluta entre as concorrentes ao prêmio de Atriz Coadjuvante pela dramédia "Os Rejeitados". Ela vive a chefe da cozinha de uma tradicional escola que perdeu o filho na Guerra do Vietnã e passa o Natal ao lado de um aluno rebelde (Dominic Sessa) e de um professor irascível, encarnado por Paul Giamatti.

Há quem diga que o Oscar de Melhor Ator pode ser dele, mas, segundo prognósticos, quem vai vencer é o intérprete do próprio Oppenheimer, o irlandês Cillian Murphy. Historicamente, o Oscar vai para quem vence dos prêmios sindicais de Hollywood, as "guilds", e ele recebeu o troféu do Screen Actors Guild. Robert Downey Jr. recebeu também, como Melhor Coadjuvante do ano, o que consagra o eterno Homem de Ferro com o mimo que, há tempos, ele almeja ter.

Foi Nolan, cineasta responsável por arrancar magistrais atuações dele e de Cillian, quem levou pra casa o troféu do Directors Guild of America. Tem tudo para ser oscarizado no domingo, e já era hora. "Batman - O Cavaleiro das Trevas" (2008), "A Origem" (2010), "Interestelar" (2014) e "Dunkirk" (2017) deram provas de sobra de que o diretor autor britânico é dos mais ousados contadores de história de nosso tempo. É um dos poucos capazes de oferecer às telas pipocas com temperos estéticos inusitados.

Pelas especulações de sites como "Awards Daily" e revistas como a "Variety", "Oppenheimer" vai vencer em oito frentes. Tem tudo para brilhar nas categorias Fotografia, Montagem, Som e Trilha Sonora, além das já citadas disputas de Ator, Ator Coadjuvante, Direção e Filme. "Pobre Criaturas", que rendeu o Leão de Ouro para Yorgos Lanthimos, dispara como o preferido para o prêmio de Direção de Arte.

Entre os documentários, o mais falado é "20 Dias em Mariupol", de Mstyslav Chernov, sobre a guerra da Ucrânia. Já entre as animações a guerra vai ser pesada. De um lado, figura o artesão japonês Hayao Miyazaki de um lado, com seu "O Menino e a Garça". Do outro lado está o trio Joaquim Dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson, que fizeram de "Homem-Aranha: Através do Aranhaverso" um fenômeno popular (com uma bilheteria de US$ 690 milhões) e um tratado contra exclusões.

Ou seja, no cômpito geral, as pautas identitárias do Presente ditam os rumos da cerimônia. O próprio "Oppenheimer" cai nessa lavra ao resvalar no antissemitismo e ao debater a gênese do Mal nos meandros da corrida armamentista, cartografando patologias institucionais dos EUA e seu saldo sobre nações como o Japão, alvo da explosão nuclear de 1945, retratada no longa.

É curioso ver como temas que hoje bifurcam o planeta em polarizações se manifesta na briga pelo prêmio de Melhor Filme Internacional. "Eu, Capitão", do italiano Matteo Garrone, por exemplo, vai ao Senegal para investigar os saldos dos fluxos migratórios. Já Wim Wenders (que fala ao Correio da Manhã na entrevista a seguir) aborda a aceitação das inquietudes cotidianas em "Dias Perfeitos", representando a produção cinematográfica japonesa. O alemão "A Sala dos Professores", de Ilker Çatak, é uma panela de pressão de xenofobias. Já o representante do Reino Unido, "Zona de Interesse", que rendeu o Grande Prêmio do Júri a Jonathan Glazer, revive os horrores de um Campo de Concentração numa ótica inédita. O diretor aborda o casulo do ódio a partir de conflitos conjugais do comandante de Auschwitz. Há quem bata o martelo em torno de seu favoritismo. Mas a Netflix parece empenhada em ganhar, via Espanha, com "A Sociedade da Neve", de J. A. Bayona. É a reconstituição da batalha pela sobrevivência da seleção uruguaia de rúgbi, cujo avião caiu nos Andes em 1972. É uma trama de resiliência, palavra de ordem para um mundo assolado de ódio.

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