Na entrevista a seguir, Walter Lima Jr. disseca a engenharia cinematográfica que fez dele um titã do audiovisual brasileiro.
Qual é o projeto de nação e de cultura a que o seu cinema se reporta nos primeiros anos de seu trabalho nas telas?
Walter Lima Jr.: É um país em mudança, é o país do pós-guerra, um país que está aspirando a um nível de compromisso com a modernidade. O país arcaico brasileiro que vi ainda garoto estava desaparecendo quando eu ia fazer o "Menino de Engenho". Aquele filme começa com uma chaminé parada, pois já não funcionam os engenhos como antigamente. É uma reflexão sobre uma coisa que foi e que precisa mudar. O filme começa com um pequeno poema dizendo: "outrora quando os engenhos recortavam a campina, veio o tempo e os engoliu e ao tempo engoliu a usina". Esse Brasil que conheci é um Brasil que estava mudando, de uma maneira dramática, desesperada, querendo chegar lá com o presidente dando um tiro no coração, como se fosse um golpe de estado, transferindo a data do golpe para dez anos depois. Era o Brasil que inventou Brasília, que queria se ver de outra maneira. Nós estávamos vivendo no cinema um momento de sintonia com o que também estava ocorrendo lá fora. Não era só o Brasil que estava mudando. O mundo começou a mudar. O cinema começou a mudar, tudo começou a mudar. Havia uma expectativa de o meu amor pelo cinema deveria chegar até a tela falando de Brasil. Do Brasil que eu sentia dentro de mim, dentro da minha casa, dentro da minha família, dentro da minha cidade, dentro da escola onde eu estudei, dentro dos meus amigos. Havia uma geração inteira nisso.
O que mudou essa ideia no país de hoje?
Se eu for no que resultou desse processo, encontro um Brasil que mudou. O Brasil não é mais aquele. O Brasil é outro. Talvez alguma coisa tenha se perdido. "Há quem diga que o tempo vence no fim. Um dia, engole a usina como engole a ti e a mim" (referência a "O Menino de Engenho").
De que forma o menino de engenho forma o projeto de cinema que consolidou a sua obra?
Não consolida a minha obra, mas eu acho que fui muito verdadeiro comigo mesmo quando eu assumi o "Menino de Engenho". Eu não tinha compromisso nenhum de ordem ideológica, partidária... com coisa nenhuma. O cinema que meus pares faziam tinha um compromisso com isso. Eu não tinha esse compromisso. A índole da minha geração inteira era assim, mas eu não precisava ser filiado a uma facção para sentir isso. Eu simplesmente estava aqui. Eu era um brasileiro que vivia a necessidade de me expressar. Ninguém estava interessado em falar de uma criança num campo de plantação. Eu estava. O que eu vou fazer logo depois, o "Brasil Ano 2000", fala disso: do atraso, da presença dos militares, da fome. Termina em uma luta de garfo e faca. Não podia ser mais óbvio. Fala da nossa identidade cultural. O terceiro filme, o "Na Boca Da Noite", é o contrário de tudo aquilo. É uma urgência. Eu tenho que falar sobre aquilo que me incomoda. O cinema brasileiro é urgente. Ele não espera a indústria, ele se inventa.
Nesse rol de invenções o que sua experiência no documentário revelou de mais contndente?
Um aprendizado veio fazendo o programa "Globo Repórter", usando som direto. O cinema foi me guiando. O tempo inteiro, o cinema vai me revelando coisas sem ter uma cartilha ideológica me dirigindo. Eu me sinto livre nesse negócio, o compromisso é comigo mesmo e com a brasilidade. Eu sou brasileiro, eu não sou um produto do Bob's, nem do McDonald's. Eu não consigo me livrar do Brasil dentro de mim.
Que novos projetos estão no seu horizonte de trabalho?
Essa coisa de pensar no que eu quero fazer difere daquilo que é necessário fazer. Eu não tenho dentro de mim um compromisso com essa necessidade, "eu devo fazer um filme, este é o momento". Eu não tenho isso. O que eu quero fazer agora é uma reflexão sobre a mentira e a verdade. Num filme que eu chamo de "O Mão Branca", que é exatamente essa coisa do falso e do verdadeiro. A notícia do que é falso é que vai criar uma verdade. "O Mão Branca" é um personagem que trabalha com a verdade, porque ele é um jornalista e tem necessidade de fazer uma reportagem. Ele se vê em um contexto em que ele precisa também vender jornal. Então ele participa de um conluio, que é criar falsas notícias. Ele se apropria de um acervo fotográfico do jornal e começa a inventar histórias sobre aquelas figuras que tem naquelas fotografias. São fotografias de vítimas da ditadura. Ele começa a criar histórias, mas ninguém vai reclamar, pois todo mundo está emudecido. Só que alguém reclama: a mãe, a avó, o pai. As pessoas vão aparecer e vão dizer: "mas esse era o meu filho". Aí a verdade começa a surgir do conflito desse homem, no meio da mentira que ele inventa. Eu não queria fazer disso um filme realista, mas também não é expressionista. Embora eu pudesse me aproveitar das belas lições que o expressionismo deixou para a gente no cinema, percebo que as ligações são muito mais próximas com a surrealidade. Que, aliás, é a última e melhor definição que eu tenho do Brasil. É um país surreal, total. E nisso eu volto a ser brasileiro.