Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Calvário das polacasno FESTin

Valentina Herszage brilha em 'As Polacas', de João Jardim, longa sobre a vida das imigrantes que se prostituam no Rio do início do século passado | Foto: Divulgação

Um dos achados da Première Brasil de 2023, ainda inédito e circuito, "As Polacas" vai navegar pelo Atlântico, nas águas da 15ª edição do Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, o FESTin, em Lisboa. O evento faz uma celebração da lusofonia e acontece também em telas brasileiras, em datas diferentes. O longa-metragem de João Jardim passa por lá nesta quinta-feira (9). A principal novidade do evento em sua versão lusitana a expansão de suas atividades por diversos espaços.

Jardim oferece ao FESTin um espetáculo narrativo enervante. Na contramão de um modelo hollywoodiano de se fazer recriações de época com planos abertos, panorâmicas e luz "lavada", apolínea, "As Polacas" trilha uma rota intimista, de "filme de gabinete", mais turva, quase num registro de chiaroscuro, com efeito de tons de marrom e vermelhos terrígenos. É assim o Novo Mundo que é ofertado às estrangeiras que aqui chegaram ao fim da I Guerra.

O que o FESTin vai ver é um painel histórico fotografado por Louise Botkay (numa luz elegante em sua dimensão mais penumbrosa) que louva a sororidade, no que ela tem de mais universal. Jardim opta por uma estética de cinema clássico, porém, algo de moderno.

Documentarista indicado ao Oscar pelo belo "Lixo Extraordinário" (feito a três, com Karen Harley e Lucy Walker), Jardim tem uma retidão infalível em "As Polacas": seu foco é o calvário de judias que vieram para as Américas à cata de subsistência digna e trombaram com a exploração sexual. Numa atuação devastadora, Caco Ciocler vive o cafetão hebreu Tzvi, que abusa de jovens em estado de errância. Há uma delas, Rebeca, bem defendida por Valentina Herszage, que despe a cota de malha farpada daquele mundo de alcova e submissão.

Quem constrói a sinuosa dramaturgia (calçada em silêncios, cumplicidades, desejos represados e brutalidade) é um time de roteiristas formado por Teresa Frota, Jaqueline Vargas e Flávio Araújo, sob as aparas finais do "maestro" George Moura (de "O Grande Circo Místico"). Moura e Jardim fizeram "Getúlio", de 2014, juntos. Voltam a se unir sob a produção de Iafa Britz, que escuda o longa com uma preciosa pesquisa sobre a diáspora judaica.

Sintonizado com pautas sociais, "As Polacas" evita como pode a objetificação e a superexposição gráfica nas agressões em coitos. Sua trama se ambienta em 1917, quando Rebeca (o papel de Valentina) pisa aqui. Fugindo da fome, do antissemitismo e da guerra na Polônia, ela chega ao Rio pronta para recomeçar a vida. Ao contrário das promessas de felicidade, a realidade encontrada na cidade é muito diferente. Ao descobrir que o marido morreu, a moça acaba se tornando refém de uma rede de prostituição e tráfico de mulheres judias, chefiada pelo impiedoso Tzvi, que Caco interpreta numa medida de força similar à de Othon Bastos como o Paulo Honório de "São Bernardo" (1974). Ao ser obrigada a transgredir suas próprias crenças, Rebeca encontra aliadas que vivem o mesmo drama e, juntas, lutam por liberdade, na criação de um cemitério no bairro de Inhaúma onde podem ser enterradas a partir de um ritual bento, numa purificação. Sem se deixar perder em firulas de época, o longa se detém sobre a aliança das garotas de programa que se forma nesse Rio dos anos 1910 a fim de debelar o jugo sexista.

No FESTin, até domingo, serão projetados ainda "Mussum, o Filmis", de Silvio Guindane; "Nada Será Como Antes", de Ana Rieper; e Mamonas Assassinas - O Filme", sucesso de bilheteria de Edson Spinello.