Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Na praia com Brian De Palma

Durante o festival, as areias de Cannes acolhem o cult 'Fantasma do Paraíso' (1974), de Brian de Palma, que vem enfrentando problemas para exibir seus trabalhos mais recentes | Foto: Divulgação

Atento a efemérides, o Festival de Cannes escalou para a seção Cinema na Praia de sua 77ª edição (agendada de 14 a 25 de maio) uma celebração dos 50 anos de um marco do musical: "O Fantasma do Paraíso" (1974). O que soa curioso nessa homenagem é o fato de que seu realizador, Brian Russell De Palma, não consiga mais filmar ou sequer exibir comercialmente seus filmes mais recentes.

Citado como referência por Quentin Tarantino e aclamado por cineastas pop europeus como Nicolas Winding Refn e François Ozon, De Palma chegou à triste marca de cinco anos de invisibilidade aos olhos da indústria audiovisual. Nenhum dos projetos de longa-metragem que estavam associados a seu nome saiu do papel, incluindo um thriller potencialmente reservado para Wagner Moura, chamado "Sweet Vengeance". O pior: o último trabalho do octogenário realizador segue estacionado desde 2019 na fila de filmes sem tela no Brasil. "Dominó", que foi seu longa mais recente, passou na Europa em raros espaços e não teve circuito nestas bandas. Protagonizado pelo ótimo Nikolaj Coster-Waldau, no papel de um policial em busca de vingança, o thriller "Dominó" aguarda estreia em vários territórios, confirmando uma maldição que se abateu sobre seu realizador. Nos EUA, ele passou batido, prejudicado por uma série de problemas de produção. Nos bastidores, fala-se em calote, que nem De Palma nem os atores foram remunerados como deveriam. Seu fracasso acabou prejudicando projetos posteriores do midas do suspense da Nova Hollywood, como "Catch and Kill", escrito para seu amigo Al Pacino, e "Predator", sobre o escândalo Harvey Weistein.

Responsável por garantir ao diretor (hoje com 83 anos) uma indicação ao Leão de Ouro, em 2012, o suspense "Paixão" ("Passion"), com Noomi Rapace e Rachel McAdams, permanece, também zero km em nosso circuitão. Nem streamings como a MUBI conseguiram trazê-lo.

Já "O Fantasma do Paraíso" teve melhor sorte. Passou recentemente numa mostra do Grupo Estação e vai para a Croisette a partir desta semana. Na trama, baseado em "Fausto", de Goethe, um musicista se torna um monstro assassino ao ter sua alma corrompida por um empresário diabólico. Sua originalidade e sua transgressão se fazem notar já na sequência de abertura, quando um dublê de Paul Anka canta "Goodbye, Eddie", nos cítricos acordes da banda Juicy Fruits. Ao rever seu experimento, o próprio De Palma declarou: "Hitchcock é o maior mestre da arte contar histórias a partir de imagens e se eu uso alguma referência de sua gramática esses elementos dão complexidade ao que eu conto. Mas acho que hoje, após quase seis décadas como diretor, eu já tenho meus próprios métodos configurando um estilo".

De Palma rodou "O Fantasma do Paraíso" em locações na Califórnia e no Texas (no Majestic Theatre, improvisado como estúdio) ao custo de US$ 1,3 milhões.A produção rendeu ao cineasta o Grande Prêmio no Festival de Cinema Fantástico de Arvoriaz, na França.

William Franklin Finley, astro que interpreta Winslow e o Fantasma em "O Fantasma do Paraíso", trabalhou nove vezes com De Palma, numa parceria iniciada em 1962 com o curta "Woton's wake". Compositor e músico, Paul Williams, escolhido por De Palma para interpretar Swan, participou como ator de cerca de 80 produções, seja para o cinema ou para a TV, incluindo o cultuado "Caçada humana" (1966), de Arthur Penn. Foi indicado ao Oscar quatro vezes e acabou premiado com a estatueta por "Nasce uma estrela", de 1977.

Mas o que dizer dos demais clássicos e cults dirigidos por De Palma?

Exibido no Festival de Rio de 2008, "Guerra Sem Cortes" ("Redacted"), um libelo contra a intervenção militar de Bush no Iraque, teve melhor sorte e foi pra grade do www.mubi.com. O longa deu a De Palma o prêmio de Melhor Direção em Veneza, na Itália. "Dália Negra", seu último sucesso, lançado em 2006, também sumiu das telas, mas hoje pode ser acessado na Amazon Prime. O que teria expelido um cineasta desse naipe do circuito? Cineasta com 63 anos de carreira.

Nascido em 11 de setembro de 1940, em Newark, Nova Jersey, De Palma estudou Física até estrear como realizador, em 1960, ao rodar o curta-metragem "Icarus". Filho de um cirurgião, a quem acompanhou em muitas operações, De Palma rodou 35 filmes nas últimas cinco décadas. Dirigiu sete curtas entre 1960 e 1966, além de um videoclipe para Bruce Springsteen, desenvolvido a partir da canção "Dancing In The Dark".

Na seara dos longas-metragens, contabiliza 31 produções, rodadas entre 1968 - quando debutou no formato, com "Murder à La mod" - e 2019 - quando "Dominó" entrou em cartaz, ficando em evidência apenas em Israel e na Hungria. Avaliando-se tudo de bom que o diretor assinou, "Dublê de corpo" (1984), "Scarface" (1983) e "Carrie, a estranha" (1976) são considerados obras-primas em sua carreira, cujos maiores êxitos comerciais foram projetos de "encomenda". Seus blockbusters: "Os Intocáveis" (1987), cujo faturamento beirou US$ 76,2 milhões, e "Missão: Impossível" (2006), que registrou uma arrecadação mundial de US$ 456,7 milhões.

Controverso por excelência, classificado como misógino e voyeurista, De Palma foi, durante décadas, classificado como um pastichador de Alfred Hitchcock, até que uma retrospectiva realizada em 2002 no Centre Pompidou recontextualizou sua filmografia, buscando uma identidade autoral própria para além de suas referências. Em 2007, quando lançou "Guerra sem cortes" no Lido, usando elementos da linguagem digital retirados do YouTube, o cineasta declarou: "Hitchcock é o maior mestre da arte contar histórias a partir de imagens e se eu uso alguma referência de sua gramática esses elementos complexificam o que eu conto. Mas acho que hoje, após quase 50 anos como diretor, eu já tenho meus próprios métodos configurando um estilo".