Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Enquanto Cannes não decola...

La Estrella Que Perdi | Foto: Divulgação

Nesta quarta-feira (15), a sessão de "Furiosa", de George Miller, começa a elevar a temperatura e a pressão do 77º Festival de Cannes, que promete trazer uma das seleções mais ousadas de toda a sua história. Mas uma área seleta do evento, o Marché du Film, dedicado a projeções para o mercado adquirir títulos ou iniciar coproduções, achados de maratonas cinéfilas como a de Roterdã ou a Berlinale, além do argentino Bafici, aquece os olhares da indústria. Conheça os títulos que devem provocar o desejo dos distribuidores, canais de TV e streamings.

TREASURE, de Julia von Heinz (EUA): Eleito "o filme fofo" da maratona alemã, esta dramédia põe a atriz e roteirista de "Girls", Lena Dunham, ao lado de um mito queer da cultura pop: Stephen Fry. Eles vivem filha e pai num road movie que se passa em 1991, data na qual a jornalista Ruth (Lena) leva seu pai, o imigrante judeu polonês Edek (Fry, sublime em cena), a um passeio por sua terra natal. Mas ela vai incluir campos de concentração no pacote, o que leva Edek, a lembrar da dor vivida por seu povo na mão dos nazistas. O tema é bem áspero. O longa, não.

DEMBA, de Mamdou Dia (Senegal): Apesar do clima espectral dessa narrativa, a suavidade reina sobre um painel de afetos familiares mesclado a sombras políticas de chagas coloniais. Na trama, com elementos fantasmagóricos, Demba (Ben Mahmoud Mbow) está às vias de se aposentar e busca mudar sua rotina, a fim de cicatrizar a dor da morte da mulher com que viveu por anos a fio. Mas a necessidade de reinventar sua relação com seu filho vai trazer fantasmas à tona.

A PAIXÃO SEGUNDO GH, de Luiz Fernando Carvalho (Brasil): Num "bloco do eu sozinho", radical, mas afetivo, Maria Fernanda Cândido brinda o cinema com seu talento e carisma numa atuação solo em que reage, com uma suavidade de gestos, ao texto de Clarice Lispector (1920-1977), publicado em 1964. A trama esbanja existencialismo: Depois de despedir a empregada, G.H. inicia uma faxina no quarto de serviço e vê uma barata. Enojada do inseto, ela decide esmagá-lo. Nesse gesto, diante da massa pastosa e branca da barata morta, ela embarca num processo de desmontagem de sua condição humana.

LA ESTRELLA QUE PERDI, de Luz Orlando Brennan: Um drama de mãe e filha, que tem o teatro como pano de fundo e conta com o talento de Mirta Busnelli e Ana Pauls. Na trama, uma atriz de prestígio ensaia uma peça comercial, sem grandes méritos estéticos, no empenho de se manter na crista da onda. Mas sua caçula resolve sair de casa, deixando o ninho vazio.

À QUAND L'AFRIQUE?, de David-Pierre Fila (Congo/ Angola): Atabaques se inflamam na evocação dr mitologias e histórias reais de povos de áreas rurais do Congo diante do irrefreável avanço da gentrifiação e do desmatamento. No filme, ritos que passam pela percussão abrem uma reflexão geopolítica com foco ecológico.

THE STRANGER'S CASE, de Brandt Andersen: Um dos últimos títulos a ser exibido, este drama coral lembra "Babel" (2006), uma vez que o conflito de um segmento afeta o outro. Ganhou o Prêmio da Anistia Internacional pela forma feroz com que expõe a batalha de um grupo de pessoas para escapar da violência na Síria, incluindo uma médica e um soldado filho de um herói local. Um mercenário interpretado magistralmente por Omar Sy (de "Lupin") vai cruzar o caminho de todos, com seu caráter nada louvável.

BETÂNIA, de Marcelo Botta (Brasil): Uma viagem existencialista pelos Lençóis Maranhenses encantou Berlim sob o realce da fotografia de Bruno Graziano. Seu diretor, egresso de São Carlos, filmou com elenco 100% maranhense a saga de uma mulher, a Dona Betânia do título, que, aos 65 anos, passa por uma mudança, depois de enviuvar. A pedido das filhas, ela vai viver perto das dunas e se reinventa. Diana Mattos é a protagonista do longa.

SONS ("Vogter"), de Gustav Möller (Dinamarca): A dinamarquesa Sidse Babett Knudsen (de "500 Miligramas" e "Borgen") eleva o padrão europeu de atuação - sobretudo no trato com o silêncio - a outro patamar à frente do novo filme do realizador do cultuado "Culpa" (2018). Sidse encarna uma agente carcerária que entra num conflito existencial e profissional com a chegada de um jovem presidiário condenado pela morte de um colega de celas a facadas. A brutalidade com que ela passa a tratar o rapaz, associada a uma série de atos suspeitos, sugere uma estranha ligação dela com o preso. O clima de suspense do longa é enervante.

LES GENS D'À CÔTÉ, de André Téchiné (França): Neste elegante suspense, a onipresente diva Isabelle Huppert empresta seu talento ao mestre europeu na saga de uma policial que se afeiçoa por seus novos vizinhos até entrar em dilema ao descobrir que um deles tem um passado de crimes.

FARUK, de Asli Özge (Turquia): Nas raias da autoficção, este painel de conflitos geracionais em Istambul parte de um exercício de observação, com ares fabulares, feito pela cineasta a partir do dia a dia de seu pai, um nonagenário que esbanja carisma. O dispositivo afetuoso armado por Asli garantiu ao longa a láurea da Crítica, votada pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci).

A DIFFERENT MAN, de Aaron Schimberg (EUA): Pela primeira vez, em quatro anos, o prêmio de Melhor Interpretação de Berlim é dado a um homem, e logo um ator que é adorado por Hollywood: Sebastian Stan, o Soldado Invernal da Marvel. A vitória dele, merecidíssima, coroa um tipo de narrativa bizarra, entre o thriller e a comédia, de que Berlim gosta um bocado. Stan vive um ator que tem uma deformidade facial adquirida por tumor na pele. É sempre escalado para papéis exóticos até passar por um tratamento incomum que transforma sua aparência, mas liberta o que existe de mais angustiado nele. A extraordinária Renate Reinsve interpreta a vizinha que atiça seus sentimentos.

MEMORIAS DE UN CUERPO QUE ARDE, de Antonella Sudassi Furniss (Costa Rica): Longa ganhador do Prêmio de Júri Popular da mostra Panorama de Berlim. Uma vez que o assunto mais recorrente do festival foi a vida depois dos 60, com a chegada da vehice, nada mais adequado para o cinema hispano-americano renovar sua força estética do que um painel experimental sobre três mulheres que se assumem idosas: Ana (68 anos), Patrícia (69) e Mayela (71). Elas falam de seus desejos e de seus medos.

ABOVE THE DUST, de Wang Xiaoshuai (China): Este trator estético asiático acabou na mostra Generation (de orientação infantojuvenil) por se debruçar sobre o que se passa na cabeça de um menino de 10 anos. Na trama, o pequeno Wo Tu sonha ter uma pistola d'água num campo de trabalhadores que sofre um processo de desapropriação de bens pelo estado. O desejo do garoto vai levá-lo a exóticas ações.

FORÇA BRUTA 4 ("The Roundup: Punishment"/ "Beom-Joe-do-si 4"), de Heo Myeong-haeng: Berlim brincou de ser Cannes ao finalizar sua competição com um thriller de porradaria pop, egresso da Coreia do Sul e dirigido por um dublê. Essa trama de investigação e tapas na cara é uma sequência de um sucesso mundial de bilheteria "Força Bruta", lançado aqui em 2022. Ma Dong-seok, ou Don Lee, o Gilgamesh da aventura "Eternos" (2021), da Marvel, é seu protagonista. Ele vive uma espécie de Dirty Harry da Ásia. Nesse novo filme, seu personagem, o detetive brucutu Ma Seok-do caça uma quadrilha de jogo ilegal online, cujo bandidão é um especialista em facas.