Por: RodrigRo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Palmas de Ouro e da discórdia

Titane | Foto: Divulgação

Três anos depois de ter conquistado a Palma de Ouro, "Titane", de Julia Ducournau, continua nos horizontes de Cannes. Há DVDs, cópias em Blu-ray e camisetas do filme à venda nas lojas da Croisette, que recebe nesta quinta o esperado "Megalópolis", de Francis Ford Coppola, na mostra competitiva da 77ª edição de seu festival anual.

Lançado no Brasil diretamente na streaminguesfera, na plataforma MUBI. Por onde passou o thriller sobre uma assassina com placas de titânio no corpo, que fica grávida de um carro (!) e expele óleo diesel da vagina (!!), foi visto com estranheza, sem harmonizar as opiniões de seus espectadores. Cannes dividiu-se num Fla x Flu tipo "Amei" x "Odiei" ao fim de sua projeção. San Sebastián viveu a mesma situação. O Festival do Rio, idem. Houve gente saindo das sessões quando, sua protagonista, Alexia (Agathe Rousselle) bate o próprio rosto contra uma pia, a fim de deformar seu nariz.

Deformar-se é parte da reinvenção pela qual a personagem há de passar quando se assume, sem culpa, como serial killer, dando um ponto final à existência de homens que passam dos limites na aproximação a ela e dando um adeus a mulheres que não reagem a seus carinhos furiosos como ela espera. E ela mata usando um pau de cabelo como arma. É indigesto (para alguns) torcer por ele. E mais indigesto ainda é lidar com a brutalidade que a cerca.

 

Uma trajetória de polêmicas

O Pagador de Promessas | Foto: Divulgação

Mas não é de hoje que Cannesincomoda muita gente com seu "palmarês". Mas é um incômodo que marca época. Conheça cinco casos que criaram muita polêmica ao longo dos 77 anos de história do festival, criado em 1939.

O PAGADOR DE PROMESSAS, de Anselmo Duarte, em 1962: O Cinema Novo já tinha posto a cabecinha pra fora, com "Barravento", de Glauber Rocha; "Os Cafajestes", de Ruy Guerra; e o coletivo de "Cinco Vezes Favela". Diante dessa nova turma, com a proposta de uma revolução estética que estendesse a dimensão revolucionária do cinema também para a forma, o projeto de drama social de Dias Gomes, à luz da direção clássica de um ator como Anselmo soava algo antigo. Para alguns. Pra outros, como o júri chefiado pelo poeta e diplomata Tetsuro Furukaki, o Zé do Burro de Leonardo Villar foi um ícone da catarse moral inerente ao fundamentalismo.

"A Classe Operária Vai ao Paraíso", de Elio Petri, empatado com "O Caso Mattei", de Francesco Rosi, em 1972: O culpado por esse empate foi o cineasta Joseph Losey, que fez história em Cannes ao premiar não dois (belíssimos) filmes, mas, sim, um conceito: o cinema político, a estética de guerrilha, a tradução audiovisual da "poesia de protesto". Era uma forma de filmar que os italianos faziam melhor do que ninguém, tendo um ator como divo Gian Maria Volontè, que conquistou uma menção especial por sua performance e também por tudo o que simbolizava. Esse simbolismo não agradou a todos. Mas os dois longas fizeram uma carreira invejável nas bilheterias internacionais.

A MISSÃO, de Roland Joffé, 1986: Foz do Iguaçu tem até hoje figurinos, indumentários e partes dos cenários usados nas filmagens deste épico indigenista sobre uma expedição jesuítica à América do Sul que lutou para proteger uma civilização dos povos originários da violência colonizadora. A trilha sonora de Ennio Morricone é um patrimônio da história da música. Mas a controvérsia em torno de sua passagem pela Croisette envolve a forte concorrência. Que o filme é bonito, não resta dúvida. Mas daí a considerá-lo mais relevante do que "O Sacrifício", o canto de cisne de Andrei Tarkovsky, não dá. Mesmo.

PULP FICTION, TEMPO DE VIOLÊNCIA, de Quentin Tarantino, em 1994: Nem o presidente do júri, Clint Eastwood, ficou plenamente convencido da força dessa narrativa em três segmentos com um introito em restaurante, esboçando, em meio a um papo de casal (Amanda Plummer e Tim Roth) um assalto. Houve quem reclamasse de que Cannes estava se rendendo ao pop. Um ou outro reclamava do excesso de sangue e de tiros. Mas o que o júri, de modo geral, à revelia de Clint, percebeu, é que ali havia uma nova modalidade dramatúrgica que incorporava o que havia de mais trivial (como os hambúrgueres do McDonald's) para propor uma nova estética.

DHEEPAN, O REFÚGIO, de Jacques Audiard, em 2015: Essa é a Palma mais mal falada da década passada em parte por contradizer um raciocínio paternalista que funda intelligentsias universitárias das mais variadas (sobretudo as da USP e da UFRJ) e descarta um conceito que está Nietzsche: o paralelismo do cordeiro. Segundo o autor de "O Crepúsculo dos Ídolos", a ave de rapina só é o que é por impor temor no cordeiro, que só é o que é por temer seu predador, gerando uma codependência. Essa é a lógica dessa narrativa. Na trama, um soldado do Sri Lanka (vivido pelo escritor Jesuthasan Antonythasan) deserta de seus compromissos de batalha, deixando para trás um passado de mortes acumuladas. Para imigrar para a Europa, ele precisa levar uma jovem e uma criança com ele, fazendo-se passar por marido e pai. Mas ao se mudar para a França, vai ter que pegar em armas de novo para proteger suas "agregadas". O que a lógica da sociologia francesa espera é que ele seja um carneirinho manso, por ser pobre, imigrante, um terceiro-mundista. Mas, uma vez matador, sempre matador.

A escolha de Meryl

Meryl Streep recebe a Palma de Ouro Honorária em Cannes | Foto: Reprodução

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Sinônimo vivo de Oscar, com 21 indicações e três estatuetas, Meryl Streep levou o Festival de Cannes às lagrimas ao ser laureada com a Palma de Ouro Honorária, pelo conjunto de sua carreira, na abertura do evento, na terça. A primeira a chorar com ela foi a diva francesa Juliette Binoche, convocada para entregar o troféu à colega americana de 74 anos. Um clipe com diferentes filmes da estrela de "A Escolha de Sofia" (1982), foi exibido, gerando uma comoção na plateia, incluindo o júri desta 77ª edição, presidido pela diretora de "Barbie", Greta Gerwig.

"Tem 35 anos que estive aqui pela última vez", disse Meryl, lembrando da ocasião em que saiu da Croisette com o prêmio de Melhor Interpretação por "Um Grito No Escuro" (1988). "Ver essas imagens me faz sentir como se eu estivesse num trem-bala vendo a minha vida passar, primeiro a minha juventude, depois a maturidade, e agora... não sei onde estou. Quando vim aqui, eu já era mãe de três crianças e esperava o quarto. Não sei como dei conta. Mas acho que cada um de vocês, minha plateia, ajudaram muito ao não enjoarem da minha cara".

Na festa, ela dedicou a Palma a seu empresário e ao cabelereiro que cuida de seu visual há quase 30 anos. "Ele trabalhou com Bergman e é o artífice por trás dos looks que eu uso na tela", disse Meryl, que concedeu uma masterclass sobre sua trajetória profissional na quarta.

Nos próximos dias, duas outras Palmas de Honra serão atribuídas. Uma fica com o Estúdio Ghibli, grife japonesa de animação, laureada com o Oscar, em março, por "O Menino e a Garça". A outra, agendada para ser entregue na cerimônia de encerramento, vai para George Lucas, o criador da franquia "Star Wars".

Nesta quinta, Cannes recebe o tão esperado "Megalópolis", de Francis Ford Coppola. É "A" produção mais esperada de todas. Especula-se que não saia de Cannes sem prêmios.

No teaser so longa, divulgado pela American Zoetrope, a produtora do cineasta, o personagem de Driver caminha sobre o teto de uma construção nababesca e observa os céus de sua cidade até que, prestes a cair, ele consegue parar o tempo com uma palavra de ordem, estalando o dedo para que tudo volte a funcionar. Pelo pouco que se sabe, o tal personagem é Cesar Catilina, um artista com poderes especiais cujo sonho é construir um mundo utópico. Ele vive numa Nova York que passou por um acidente e precisa ser recriada. Mas ele terá como algoz o prefeito Franklyn Cicero, papel dado a Giancarlo Esposito. Idealizada por Coppola em 1977, esboçada como projeto em 1983 e retomada em 2019, a trama de "Megalópolis" conta com um elenco de peso, que reúne Dustin Hoffman, Jon Voight, Aubrey Plaza, Nathalie Emmanuel, Shia LaBeouf e Talia Shire (irmã do cineasta). As filmagens aconteceram em 2022 e 2023, nos estúdios Trilith, em Atlanta, na Geórgia.

Dupieux entre o escárnio e o tédio

Le Deuxième Acte | Foto: Divulgação

Apesar de curto (1 hora e 25 minutos), "Le Deuxième Acte", o filme de abertura de Cannes, teve tempo de sobre para chatear a plateia com sua filosofia de botequim sobrea arte de representar. "O real é o real e ponto final" é o diálogo mais profundo que o longa conseguiu oferecer à Croisette. Seu realizador, Quentin Dupieux, é um satirista nem sempre engraçado como acredita ser que já emplacou boas ideias ("Rubber"), mas já errou um bocado ("Wrong"). Seu melhor filme até hoje, "Yannick", estreou na MUBI faz pouco e brinca com o teatro. A trama que levou para o festival francês deste ano também brinca com a arte de atuar. Tem até alguns momentos de boas gargalhadas, mas caminha para um horizonte reflexivo de onde pouca coisa se extrai e quase nada se aproveita. A fotografia burocrática complica ainda mais a sua fruição. Seu enredo se concentra num jogo de vaidades de uma atriz cheia de insegurança, três atores e um suposto figurante em crise de pânico. Mas esses arquétipos vão mudando. O destaque do estelar elenco (Léa Seydoux, Vicent Lindon, Louis Garrel) é Raphaël Quennard, na pele de um aspirante a astro debochado.