Mas não é de hoje que Cannesincomoda muita gente com seu "palmarês". Mas é um incômodo que marca época. Conheça cinco casos que criaram muita polêmica ao longo dos 77 anos de história do festival, criado em 1939.
O PAGADOR DE PROMESSAS, de Anselmo Duarte, em 1962: O Cinema Novo já tinha posto a cabecinha pra fora, com "Barravento", de Glauber Rocha; "Os Cafajestes", de Ruy Guerra; e o coletivo de "Cinco Vezes Favela". Diante dessa nova turma, com a proposta de uma revolução estética que estendesse a dimensão revolucionária do cinema também para a forma, o projeto de drama social de Dias Gomes, à luz da direção clássica de um ator como Anselmo soava algo antigo. Para alguns. Pra outros, como o júri chefiado pelo poeta e diplomata Tetsuro Furukaki, o Zé do Burro de Leonardo Villar foi um ícone da catarse moral inerente ao fundamentalismo.
"A Classe Operária Vai ao Paraíso", de Elio Petri, empatado com "O Caso Mattei", de Francesco Rosi, em 1972: O culpado por esse empate foi o cineasta Joseph Losey, que fez história em Cannes ao premiar não dois (belíssimos) filmes, mas, sim, um conceito: o cinema político, a estética de guerrilha, a tradução audiovisual da "poesia de protesto". Era uma forma de filmar que os italianos faziam melhor do que ninguém, tendo um ator como divo Gian Maria Volontè, que conquistou uma menção especial por sua performance e também por tudo o que simbolizava. Esse simbolismo não agradou a todos. Mas os dois longas fizeram uma carreira invejável nas bilheterias internacionais.
A MISSÃO, de Roland Joffé, 1986: Foz do Iguaçu tem até hoje figurinos, indumentários e partes dos cenários usados nas filmagens deste épico indigenista sobre uma expedição jesuítica à América do Sul que lutou para proteger uma civilização dos povos originários da violência colonizadora. A trilha sonora de Ennio Morricone é um patrimônio da história da música. Mas a controvérsia em torno de sua passagem pela Croisette envolve a forte concorrência. Que o filme é bonito, não resta dúvida. Mas daí a considerá-lo mais relevante do que "O Sacrifício", o canto de cisne de Andrei Tarkovsky, não dá. Mesmo.
PULP FICTION, TEMPO DE VIOLÊNCIA, de Quentin Tarantino, em 1994: Nem o presidente do júri, Clint Eastwood, ficou plenamente convencido da força dessa narrativa em três segmentos com um introito em restaurante, esboçando, em meio a um papo de casal (Amanda Plummer e Tim Roth) um assalto. Houve quem reclamasse de que Cannes estava se rendendo ao pop. Um ou outro reclamava do excesso de sangue e de tiros. Mas o que o júri, de modo geral, à revelia de Clint, percebeu, é que ali havia uma nova modalidade dramatúrgica que incorporava o que havia de mais trivial (como os hambúrgueres do McDonald's) para propor uma nova estética.
DHEEPAN, O REFÚGIO, de Jacques Audiard, em 2015: Essa é a Palma mais mal falada da década passada em parte por contradizer um raciocínio paternalista que funda intelligentsias universitárias das mais variadas (sobretudo as da USP e da UFRJ) e descarta um conceito que está Nietzsche: o paralelismo do cordeiro. Segundo o autor de "O Crepúsculo dos Ídolos", a ave de rapina só é o que é por impor temor no cordeiro, que só é o que é por temer seu predador, gerando uma codependência. Essa é a lógica dessa narrativa. Na trama, um soldado do Sri Lanka (vivido pelo escritor Jesuthasan Antonythasan) deserta de seus compromissos de batalha, deixando para trás um passado de mortes acumuladas. Para imigrar para a Europa, ele precisa levar uma jovem e uma criança com ele, fazendo-se passar por marido e pai. Mas ao se mudar para a França, vai ter que pegar em armas de novo para proteger suas "agregadas". O que a lógica da sociologia francesa espera é que ele seja um carneirinho manso, por ser pobre, imigrante, um terceiro-mundista. Mas, uma vez matador, sempre matador.