Suzana Amaral, que morreu em 2020, acumulava as mais variadas experiências na vida e na arte; Marcélia Cartaxo, por outro lado, era uma atriz de 20 e poucos anos, com escassa vivência fora de Cajazeiras. Esse contraste agradava à diretora paulistana, que buscava justamente a imaturidade de alguém que nunca tinha feito cinema.
Elas conversaram muito nos meses de pré-produção, mas as orientações foram mínimas quando as filmagens começaram. "A Suzana não queria que eu soubesse como me comportar diante das câmeras. Eu tinha dúvidas, e ninguém me dizia para olhar para um lado ou para outro. Ela pediu que eu atuasse como fazia no teatro", conta a atriz. "Só aprendi a lidar com a câmera anos depois".
Deu certo o método de atuação, ou justamente a aversão a métodos consagrados. A datilógrafa nordestina Macabéa -"a única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava"-- ganhou as feições e os movimentos de Cartaxo.
O primeiro longa-metragem de Suzana Amaral conquistou dez prêmios no Festival de Brasília de 1985, entre os quais de melhor filme e atriz. Em fevereiro do ano seguinte, o Festival de Berlim deu a Cartaxo o Urso de Prata de melhor atriz.
"'A Hora da Estrela' foi um acontecimento gigantesco na minha vida. Definiu minha carreira, meus sonhos", diz a atriz. Mas o cinema e a TV nem de longe sentiram o mesmo impacto: nos anos seguintes, Cartaxo recebeu uma sequência de convites para viver empregadas domésticas com participações muito secundárias.
Nada contra interpretar domésticas, ela ressalta. O problema é ser chamada só para esse tipo de papel, com personagens praticamente sem história.
Uma nova reviravolta na carreira dela se deu com "Madame Satã", filme de 2002 dirigido por Karim Aïnouz. Fez o papel da prostituta Laurita e, mais uma vez, acumulou uma penca de prêmios.
Desde então, tem sido convidada para papéis mais elaborados no cinema. Na TV, atuou na primeira temporada da série "Cangaço Novo", da Amazon Prime Video, e voltará para a segunda leva de episódios.
Como Cartaxo, "A Hora da Estrela" passou um tempo longo quase esquecido, praticamente restrito a discussões acadêmicas.
Agora, porém, o filme ganha um sopro de vida, para citar outro romance de Lispector. Depois de um processo de restauração digital, que se estendeu de dezembro de 2023 a maio deste ano, "A Hora da Estrela" voltou a ocupar os cinemas nesta quinta.
O longa de Suzana integra o projeto Sessão Vitrine Petrobras, que tem se notabilizado por levar às salas destaques da produção brasileira recente. Nesta edição do projeto, além desses novos longas, dois filmes de décadas passadas, ambos dirigidos por mulheres, foram recuperados para exibição nos cinemas.
"Durval Discos", filme de 2002 de Anna Muylaert, foi digitalizado e relançado em novembro passado. "A Hora da Estrela" passou por uma restauração digital, um processo que, grosso modo, envolve mais pesquisas e cuidados nos ajustes.
Ambos os trabalhos foram feitos no laboratório da Mapa Filmes/Link Digital, no Rio, sob a coordenação técnica de Débora Butruce, presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual.
Envolvida com essa atividade há mais de 20 anos, Butruce trabalhou na recuperação de obras de diretores como Joaquim Pedro de Andrade e Jorge Bodanzky. Destacou-se principalmente ao coordenar a restauração de "Rainha Diaba", filme de 1974 dirigido por Antônio Carlos Fontoura.
Essa iniciativa, responsável por dar vida nova ao clássico protagonizado por Milton Gonçalves, foi considerada um dos dez melhores trabalhos de restauração de 2023 pela revista americana Film Comment.
"Existe uma mudança de mentalidade em curso. As pessoas começam a entender a preservação como parte da cadeia do audiovisual", diz ela.
Graças ao olhar e à técnica de Butruce, o cinema reencontra agora pelo menos três grandes mulheres da cultura brasileira: Clarice Lispector, Suzana Amaral e Marcélia Cartaxo.