Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Velando a exclusão

O cineasta Raoul Peck e as imagens de Ernest Cole resgatadas para o documentário | Foto: Ernest Cole

Discretas, mas implacáveis no registro do racismo, as fotos do sul-africano Ernest Levi Tsoloane Cole (1940-1990) hoje são encaradas como um documento vivo das feridas geopolíticas deixadas pelo Apartheid. Sua vida foi maculada pela intolerância e terminou nas raias da pobreza, num processo de invisibilidade que hoje cega ao fim graças ao cinema.

O Festival de Cannes ajudou a consagrar seu nome com a projeção do documentario "Ernest Cole, Lost and Found", dirigido por um ativista da luta contra o racismo, o haitiano Raoul Peck, indicado ao Oscar por "Eu Não Sou Seu Negro", em 2017.

"Eu conhecia algumas das fotos de Cole do tempo em que militei no comitê contra Apartheid, quando vivi em Berlim, mas os detentores dos direitos de sua obra me procuraram pedindo ajuda para a preservação dos retratos. Quando me debrucei sobre as fotos, fui entendendo que a história a ser contada estava nos bastidores dela, como se fosse a câmera escura de revelação, onde se escolhe o que destacar num retrato", diz Peck ao Correio da Manhã. "Cole não queria ser cronista da pobreza, mas sim um retratista da condição humana", analisa.

Cole deixou como chave para sua obra um livro: "House of Bondage". Deixou ainda um legado de 60 mil negativos dele num cofre na Suécia, onde viveu depois de ter clicado evidências da violência racial em seu país, em tempos anteriores à libertação de Nelson Mandela. Esses cliques valeram a Cole uma relação azeda com as autoridades de sua nação, mas garantiram a ele espaço em revistas e jornais da Europa e dos EUA.

"Não quis investir num clima de thriller e ir atrás desse achado, de modo a valorizar esse arquivo secreto. O mais importante era dar voz a Ernest, entender o que se passou na cabeça dele ao sair da África do Sul e ir para Nova York. Eu sei o que é ser exilado e, portanto, posso imaginar o que ele sentia", disse Peck, que convocou o ator LaKeith Stanfield para ser a voz de Cole no filme. "Era um dispositivo para parecer que Ernest está narrando sua própria trajetória, como se estivesse vivo entre nós".

A contundência narrativa de "Ernest Cole, Lost and Found" pode dar a Peck a láurea de Melhor Documentário de Cannes, chamada de L'Oeil d'Or. O troféu surgiu em 2015 a fim de promover a força da não ficção.

"Os documentários hoje passam por uma nova cilada com o streaming. É verdade que a demanda pelo formato documental aumentou, mas as plataformas impõem um processo de seleção que se pauta por critérios comerciais", diz Peck.

"O que importa na demanda são biografias de celebridades e histórias sobre crimes reais. O documentário que eu faço se pauta pela criação. Eu lido com arquivos, como as fotos de Ernest Cole, porque meu papel político é recuperar a História. Não fui fazer cinema para te uma carreira na mídia. Fui fazer cinema por neessidade política".