Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA FILME - MOTEL DESTINO: Gozo de sangue

'Motel Destino', longa de Karim Aïnouz fotografado por Hélène Louvart | Foto: Divulgação

Tem sempre areia nas camas do Motel Destino, hospedaria para amores fugazes localizada à beira de estrada numa praia do Ceará. É Dayana quem mantém a organização dos quartos. Ela ri quando fica nervosa. Ri num desatino quando o perigo se aproxima, mas sabe se zangar com clientes que inventam desculpas, fazem orgias ou inventam motivos para não pagar.

Pensou que esse era o caso de Heraldo quando o rapaz alegou ter sido roubado pela moça com quem passou a noite, antes de adormecer. Mas o sujeito falava a verdade. Não toda. Ele não contou, por exemplo, que está jurado de morte e que acabou de ter seu irmão assassinado. Ia matar um francês que mora na região, a mando de sua chefe, numa organização criminosa, mas negou fogo, ou melhor, atrasou-se para a missão - o que deu ruim... muito ruim.

Mas Dayana se encanta por ele e tenta disfarçar o desejo que sente de seu companheiro (e misto de chefe), Elias (papel que pode dar a Fábio Assunção uma consagração há muito merecida na telona). A vontade que ela tem de se livrar desse homem que só lhe trata bem quando quer chamego é grande. Mas ela sabe quem tem direito a um percentual alto no faturamento do Destino, pois, afinal, trabalhou para isso. O problema é como tirar Elias do jogo.

Até esse questionamento vir à tona, Dayana já arrebatou a plateia do novo filme de Karim Aïnouz, exibido em competição no 77º Festival de Cannes, graças ao desempenho inquieto e cativante de sua intérprete, Nataly Rocha.

Seu modo franco de falar a encaixa num rol de personagens nacionais que se expressam sem filtros, sendo direta e cortante. Igualmente arrebatador é o desempenho de Igor Xavier como Heraldo, um sonhador que anseia pela chance de ter sua oficina mecânica em São Paulo, deixando a rotina cearense para trás.

Já Elias só pensa em ampliar seu motel. Vai para Fortaleza comprar brinquedinhos eróticos e pensa em obras para melhorar o atendimento. Ele só não pensa no bem-estar de Dayana. Nem é capaz de imaginar a trama digna de um filme dos Irmãos Coen (como "Gosto de Sangue" ou "Fargo") que se desenha ao seu redor.

Apoiado na caleidoscópica fotografia da francesa Hélène Louvart, Karim deu a Cannes um filme surpreendente, que se inscreve nos códigos do thriller noir (sobretudo o dos anos 1980), ao mesmo tempo em que presta um tributo à pornochanchada - embora sem humor.

É um estudo delicado de personagem, que tenta compreender os resquícios de Brasil por trás de cada vértice de seu triângulo. Passa pela violência contra as mulheres, o crime organizado, a corrupção e o machismo, desconstruindo cada um desses males no roteiro escrito com Wislan Esmeraldo e Maurício Zacharias.

Visualmente, a direção de arte de Marcos Pedroso faz do motel Destino um quarto - e vivíssimo - personagem, que serve de microcosmos para abismos onde ainda estamos enfiados.