Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Fábulas da História

Os líderes históricos da II Guerra se reúnem em 'Conto de Fadas', de Sokurov | Foto: Divulgação

Às 21h desta quarta-feira, no Estação NET Rio, tem sessão de um dos filmes mais corajosos da década: "Conto de Fadas" ("Fairytale"), de Alexander Sokurov. Aos 72 anos, com 52 prêmios em uma carreira iniciada em 1974, entre os quais o Leão de Ouro dado a seu "Fausto", em 2011, o diretor não acetou a censura a produções russas que se abateu sobre o audiovisual, como retaliação às ações de Vladimir Putin na guerra da Ucrânia e aproveitou seu status de antipatizante a todas as formas de totalitarismo para deixar circular uma das experiências sensoriais de maior radicalismo de sua obra. "Skazka" é o título original do longa-metragem.

Há cerca de dois anos, a fita concorreu ao Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, na Suíça, onde Sokurov foi premiado, em 1987, por "A Voz Solitária do Homem".

"Não existe 'era uma vez', nem existem elementos de animação, mas existe a recriação quase fabular de figuras políticas reais, com uma moral da História. Foi um garimpo de arquivos, no qual tudo o que você ouve vem de depoimentos reais colhidos em documentos e em registros fonográficos. Mas não é um documentário. É uma provocação fabular", afirmou Sokurov ao Correio da Manhã, em Locarno.

Sempre acompanhado de seu tradutor pessoal, Sokurov sabe que não é o momento oportuno para um filme russo tentar a sorte. Porém, a potência do que ele criou transcende geopolíticas, ao resgatar imagens de Hitler, Winston Churchill e Stalin nua releitura mitológica, como se os três estivessem num Purgatório.

"O momento pelo qual a Rússia passa hoje é duro. Durante o governo soviético, eu tive a honra de ser amigo de Andrei Tarkovsky (diretor de 'Nostalgia' e 'Solaris') e dividi com ele o gosto de poder ver a vida por diferentes prismas, valorizando sua complexidade. O que se pode dizer de mais concreto sobre o governo de Putin é que ele é algo complexo. Muito do que se passa e território russo hoje já estava prenunciado nos escritos de Tolstói, está nas páginas de 'Guerra e Paz'. Mas falta memória. E eu nem sei dizer se 'Conto de Fadas' gera memória. Ele questiona...", diz Sokurov.

Quando bateu seus olhos criteriosos na delirante alegoria de Sokurov com Stalin e Hitler a falar sobre Poder, à sombra de Cristo, o curador de Locarno, o crítico suíço Giona A. Nazzaro, disse ter provado de uma sensação cinéfila única.

"Estamos falando de um exercício de autor que vai deixar espectadores de cabelos em pé. É uma expressão estética que nada a ver com o que ele fez antes e nada a ver com o que fará depois", disse Nazzaro, referindo-se a um processo transcendental de entendimento da Eternidade, do Divino e das bestialidades cometidas na II Guerra sob a ótica de lideranças políticas associadas a genocídios.

Hitler já havia sido retratado por Sokurov antes, em "Moloch" (1999), que ganhou o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes.

"Minha premissa em 'Conto de Fadas' era retratar figuras políticas proeminentes do século XX, num lugar fronteiriço à fantasia que fazemos delas. Napoelão Bonaparte matou milhares de pessoas em nome da França, invadiu países, desrespeitou os códigos legais de muitas sociedades. Ele se enquadra na concepção histórica do Mal, chegou a ser estudado como vilão. Mas, hoje, há quem o veja como herói. É esse relativismo que me interessa. Eu procuro retratar o que sabemos dessas pessoas, deslocando-as de sua condição circunstancial de Poder e abordando suas inquietações emocionais. Hitler aparece no meu filme como uma figura triste. Stalin aparece cansado, esperando saber quando a Morte vai chegar. É um reflexo da tortura eterna a partir da qual enquadro os dois", diz o cineasta.

"E esse enquadramento que busco, na imagem, depende do som, depende dos diálogos que eu reuni. Não faço cinema com medo da palavra. O verbo é parte da energia cinematográfica".