Por: CRÍTICA FILME - A FILHA DO PALHAÇO:

CRÍTICA FILME - JARDIM DOS DESEJOS: A flor do tormento

Narvel contempla a beleza da quinta na qual é jardineiro, sob a égide da direção de Paul Schrader | Foto: Divulgação

 

Há um momento sublime de catarse em "O Jardim dos Desejos", no qual o protagonista, o jardineiro Narvel Roth (interpretado pelo australiano Joel Edgerton) passa por uma mata de beira de estrada e a vê florescer, vicejando flores reluzente em plena noite. É um raro ponto de onirismo num filme cravejado de espinhos morais.

É um rasgo da metafísica que o diretor Paul Schrader carrega de sua formação religiosa, já expressa antes na obra-prima "First Reformed - Fé Corrompida" (2017), que lhe valeu uma indicação ao Oscar. Seu interesse pelos ritos da fé cristã dá àquela trama muito bem defendida por Ethan Hawke e Amanda Seyfried um lugar de metáfora dos calvários de um mundo polarizado por diversos ódios.

Na pandemia, em 2021, ele voltou ao circuito com "O Contador de Cartas", explorando monstruosidades que o às do baralho vivido por Oscar Isaac tenta esconder em lances exuberantes com naipes. Ali, também será uma mulher (vivida por Tiffany Haddish) quem vai abrir a sua Caixa de Pandora de deixar seus demônios livres. A mesma operação se faz notar com a arrebatadora trama envolvendo Narvel e seu passado de sujeiras expressas na pele de seu peito e de suas costas sempre cobertas por tatuagens de guerra.

Figura impávida, mas eivada por inquietações existencialistas, Navel é um guerreiro nato com um histórico de mortes nas costas. A luta para manter domesticado o lobo do homem em sua alma imprime uma tensão crescente em torno de um filme delineado pela onipresente trilha musical de Devonté Haynes.

Implosivo, sempre se destroçando por dentro a fim de manter a ordem, Narvel é um sujeito calmo, que fuma um só cigarro ao dia, fala baixo, tem senso de equipe (valorizando quem trabalha na terra com ele) e faz de tudo para agradar sua patroa, a Sra. Haverhill, aristocrata esnobe vivida por Sigourney Weaver.

No meio das rosas de Gracewood Gardens, quinta que a viúva Haverhill cultiva por apreço à Natureza, Narvel vai ser mais do que um cuidador de pétalas e corolas. Ele é seu guardião, o seu brinquedo sexual e arranjador. Sua tarefa (mais árdua) em "The Master Gardener" (o título original da produção) será assumir a guarda da problemática sobrinha-neta da patroa, a jovem Maya (Quintessa Swindell), a quem vai transformar em aprendiz. Mas a chegada da jovem, com um histórico de arruaças e confusões e envolvimento com drogas, liberta espíritos maus que o artesão da jardinagem trancafiou nas suas lembranças. Sabemos pouca coisa do que ele fez, apenas em lampejos, fragmentos de recordações. Mas é o bastante para que o roteiro escrito pelo mestre da artesania dramatúrgica que dirigiu "A Marca da Pantera" (1982) e "Gigolô Americano" (1980) nos convença das destrezas de Narvel e do quão perigoso ele é.

Sua figura é um indício histórico da marca autoral de Schrader, que já se faz notar em seu trabalho como roteirista "Taxi Driver", Palma de Ouro de 1976: sua filmografia gravita entre os pecados e as culpas. Suas personagens têm a ciência exata de seus crimes e da atrocidade que podem provocar, mas estão atrás das clareiras da redenção. Suavizado pela fotografia serena de Alexander Dynan, o calvário de Narvel é carregar os grilhões de um tempo em que a intolerância era a sua identidade. Mas as flores que o cercam hoje são mais perfumadas.