O legado crítico de Laurent Cantet
Morte prematura do cineasta, bamba do debate sobre exclusão amplia o interesse por seu derradeiro longa-metragem, '@Arthur Rambo', um retrata da era dos linchamentos virtuais
Com a morte de Laurent Cantent, aos 63 anos, no último dia 25, decorrente de doença, a obra do realizador francês passou a atrair mais cliques no ambiente dos streamings. "Entre os Muros da Escola", que rendeu a ele a Palma de Ouro, em 2008, por decisão unânime de um júri presidido por Sean Penn, hoje arrasta internautas para a plataforma Reserva Imovision. Lá, é possível encontrar ainda um afetuoso Cantet, porém menos citado: "Retono À Ítaca" (2014).
Porém o título hoje mais buscado é seu derradeiro longa-metragem: "@Arthur Rambo - Ódio nas Redes". Ele pode ser alugado ou comprado no YouTube.
Achismos decorrentes do chamado "efeito manada", a predisposição coletiva em atacar alguém por conta de uma histeria coletiva, quase sempre alimentada pelo Facebook, são o foco desse filme devastador, rodado por um diretor que entrou para a posteridade por ser um investigador das fraturas sociais francesas. Ele exibiu seu estudo sobre a intolerância em Toronto e em San Sebastián, no norte da Espanha, onde concorreu à Concha de Ouro.
"O redesenho que se ensaiou para o conceito de coletividade preencheu lacunas que práticas de Poder não satisfazem, mas esbarrou numa obsessão pelo número de seguidores. O fervor para ter visibilidade na internet leva a atitudes nem sempre éticas. E eu me debruço sobre essa incompatibilidade entre o que é ser inclusivo e o que é ser excludente em todo o meu cinema, uma vez que ele se esforça em manter viva a discussão do que se passa sobretudo entre os jovens, que têm comportamentos sempre em ebulição, seja pelos hormônios, seja pelos sonhos", disse Cantet ao CORREIO DA MANHÃ quando anunciou o projeto de "@Arthur Rambo - Ódio nas Redes". "Eu não sigo ideologias partidárias em meu discurso. Mas eu faço da inclusão uma bandeira. O que me guia é o interesse na complexidade humana".
De um domínio espartano das ferramentas narrativas da tensão, o longa acompanha o ódio que as redes sociais passam a destilar, da noite para o dia, contra um escritor best-seller de origem argelina depois que uma série de tweets postados por ele, quando mais moço, espalham-se pela web. Rabah Nait Oufella vive o protagonista, Karim D. No auge de seu sucesso, com um livre baseado no cotidiano de sua mãe, uma imigrante, o rapaz passa a ser rejeitado por todos que lhe paparicavam depois do vazamento de seus escritos sob o pseudônimo de Rambo. Pra atrair curtidas, ele era agressivo em suas postagens, atacando judeus e a comunidade gay, praticando gordofobia e sendo machista. Mas a retaliação que sofre por essas ideias nada empáticas será das mais brutais. Cantet parte desse mote para debater o linchamento virtual.
"Karim D. é a representação viva da fratura social entre os mundos periféricos", diz Cantet ao CORREIO, num papo em San Sebastián, onde lembrou sua passagem pela Festa Literária das Periferias (FLUP), no Rio de Janeiro, em 2017. "Entre os adolescentes, a ficção se contorce a partir de vetores da realidade, gerando choques com as convenções. A literatura ainda é um dos mais fortes caminhos de um jovem atrair a mirada do mundo para suas angústias".
Ele deixou inacabado um projeto que planejava lançar em 2025: "L'Apprenti".