Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

A mercadoriamais preciosa de Annecy

'La Plus Précieuse des Marchandises' leva a prosa de Jean-Claude Grumberg à magia da animação | Foto: Divulgação

 

Jardim do Éden da indústria animada, consagrado por revelar desenhos e filmes em técnicas como stop-motion e computação gráfica que se candidatam ao Oscar, o Festival de Annecy, na França, abre sua edição de 2024 neste domingo apostando numa farta diversidade de temas, entre eles o horror do Holocausto. Mas o assombro da II Guerra Mundial entra nas telas do evento, com toda a sua bestialidade, na forma de uma fábula sobre esperança e resiliência: "La Plus Précieuse Des Marchandises".

Indicado à Palma de Ouro de Cannes, o longa-metragem é baseado no best-seller homônimo de Jean-Claude Grumberg, lançado nas livrarias como "A Mercadoria Mais Preciosa". A direção é do francês Michel Hazanavicius, diretor do oscarizado "O Artista" (2011).

"O produtor chegou a esse projeto antes de mim, antes que eu lesse o livro, e eu jamais havia pensado em fazer algo ligado à Shoah antes, pelas minhas origens familiares judaicas. Tinha uma questão de legitimidade histórica, até pelo fato de eu ter nascido em 1967, bem depois da Guerra. Mas a possibilidade de abordar o tema sob uma ótica fabular e a força do texto de Grumberg me interessaram. Existe uma pergunta que aquele livro evoca ao falar do Holocausto: 'Se Deus existe, onde ele estava quando aquilo tudo aconteceu?'. Eu só não queria ser explícito na representação da violência dos nazistas. Preferia que a imaginação da plateia desse conta disso", disse Hazanavicius em Cannes. "Sou um diretor ligado à comédia, a filmes leves. Fazer uma animação também era um desafio. Hesitei até que minha mulher (a atriz Bérénice Bejo) disse 'Você tem que fazer'. Aí...".

"La Plus Précieuse Des Marchandises" compete em Annecy com dez outros filmes: "Angelo dans la forêt mystérieuse" (França); "Flow" (Letônia); "Anzu, Chat-fantôme" (Japão); "Sauvages" (Suíça); "The Colors Within" (Japão); "Memoir of a Snail" (Austrália); "Totto-Chan: La Petite Fille à la fenêtre" (Japão); "Rock Bottom" (Espanha); "Slocum et moi" (Luxemburgo); "The Imaginary" (Japão); e "L'Orage" (China).

"Fazer um filme animado é bem diferente do live-action, principalmente por conta do trabalho com a engenharia de som exigido pelo formato, no qual o impacto sonoro é essencial", disse Hazanavicius, que antes rordou "O Fomridável" (2017), sobre Jean-Luc Godard (1930-2022), e o "O Príncipe Esquecido" (2020), superprodução com Omar Sy.

Na trama animada filmada por Hazanavicius, um casal de lenhadores observa, diariamente, trens atulhados de gente passarem diante de seus olhos. Ingênua, a mulher sempre espera por um aceno ou mesmo um presente. "Para onde vão essas pessoas?", ela se pergunta. Até que alguém joga o presente que ela jamais pensou receber: um bebê. O marido, num primeiro momento, pensa em devolver a criança, mas, pouco a pouco, encanta-se pela menina e deixa seu instinto paterno aflorar. A narração foi feita por um mito das telas Jean-Louis Trintgnant (1930-2022), pouco antes de sua morte.

"Jean-Louis era a voz mais bonita do cinema francês. Foi incrível gravar com ele e agora que ele não está mais aqui, entre nós, sua voz se faz ainda mais presente", disse o diretor, que conta que o trabalho de produção dos desenhos, na direção de arte, levou cerca de três anos para sair do papel. "Não busquei reproduzir a realidade como ela é. Meu maior empenho era fazer um ensaio humanista, um tributo ao coração".

Vai ter Brasil em concurso em Annecy, na mostra Contracampo, com "Our Crazy Love", de Nelson Botter Jr.