Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Shyamalancada vez mais eletrizante

Josh Hartnett estrela o esperado 'Armadilha', novo longa do indiano (M. Night) Shyamal, em que um psicopata é cercado num show | Foto: Divulgação

 

A pergunta é qual grau de adrenalina e de loucura atinge as veias de um psicopata que leva uma vida de fachada e, num belo dia, ao levar a filha a um show, perece que o evento é uma arapuca para prender um serial killer cuja identidade a polícia almeja descobrir, embora tenha certeza absoluta de que ele está lá? É essa a pergunta central de "Armadilha" ("Trap"), novo exercício da autoralidade do indiano radicado na Filadélfia Manoj Nelliattu (M. Night) Shyamalan, hoje com 53 anos.

Com estreia marcada para 9 de agosto, o longa-metragem estrelado por Josh Harnett faz ferver a expectativa de cinéfilos em torno de um diretor que desde 1999, quando lançou "O Sexto Sentido", é encarado como um mestre do assombro e um rei das viradas de roteiro. Ele ainda está nos créditos de "Os Observadores", de sua filha, Ishana Shyamalan.

Cotado para lotar salas de exibição, "Armadilha" é o segundo trabalho de Shyamalan desde que ele presidiu o júri do Festival de Berlim, em 2022, quando entregou o Urso de Ouro à catalã Claire Simon por "Alcarràs", que estreia este mês na MUBI. Antes, ele lançou "Batem à Porta", em 2013. "Eu tento sempre encontrar ritmo, até quando busco seguir as relações afetivas e encontrar o coeficiente de descontrole na dinâmica das interações", disse o diretor, em uma palestra que concedeu na TV Globo, em 2015, explicando o que espera da arte: "Eu almejo o inusitado".

Na época, ele veio lançar o seriado "The Wayward Pines", hoje em cartaz na plataforma Star , e deu uma palestra nos Estúdios Globo sobre a arte de dirigir enredos pautados pelo medo e pela fantasia. "Uma vez, passeando de carro numa esquina pertinho de onde eu moro, na Filadélfia, tive que ultrapassar um carro, que estava bloqueando a rua, e segui adiante, numa boa, até que o cara me fechou, com uma atitude assustadora, cobrando que eu passei à sua frente. Era tão furioso que eu percebi o quanto o horror nos espreita mesmo nas situações mais cotidianas", disse o cineasta, que faturou aos tubos com seu longa anterior, "Tempo" ("Old"), uma produção de US$ 18 milhões que arrecadou cerca de US$ 90 milhões.

Seu faturamento foi uma prova do quanto Shyamalan soube se adaptar às realidade dos temas e das patrulhas morais para preservar sua fama como um campeão de bilheterias. Fama que já se perdeu, passando uma década distante de sua rotina, entre 2006 e 2014, até ele conseguir se reinventar. Mas, a reinvenção é uma arte na qual ele é um mestre. Depois de ter caído em desgraça com o injustiçado "A Dama na Água" (2006), ele amargou cerca de dez anos da mais peçonhenta rejeição até se recriar a partir da televisão, com "Wayward Pines" (2015), apoiado no carisma de Matt Dillon. Ali, após uma fase de blockbusters aos quais o público tinha a mais dura indiferença, ele redescobriu o prazer de filmar com baixo orçamento e pura liberdade. Foi essa a sua realidade em "A Visita" (2015), um exercício autoral da carpintaria do susto, com o qual ele redescobriu as manhas do terror a partir das quais havia despontado para o estrelato, com o já citado "O Sexto Sentido" - que custou US$ 40 milhões e faturou US$ 672 milhões. De volta às veredas do temor e do tremor, onde seu nome virou grife, ele se reencontrou, na plenitude de sua potência estética, e recuperou a tarimba de abocanhar gordas bilheterias, com um soberbo trabalho díptico: "Fragmentado" (2017) e "Vidro" (2019). Os dois formam uma trinca com "Corpo Fechado" (2000) e vieram carregados de elogios, a maioria voltados para a condução febril do enredo sobre um sujeito com 23 personalidades que sequestra três moças e acaba atraindo as atenções de um vilão chamado Sr. Vidro (Samuel L. Jackson).

A medida de seu sucesso se dá em números: esses seus dois últimos longas arrecadaram um total de meio bilhão de dólares, juntos: US$ 548 milhões. Ecos de "Psicose" (1960) trovejam narrativa adentro, fazendo justiça à comparação entre Shyamalan e a práxis cinemática de Hitchcock, no que envolve a opção por sugerir em vez de escancarar, de criar clima ao invés de apelar para um grafismo pornográfico da violência. Viradas de roteiro - o trunfo de seus primeiros filmes - ficaram para trás. É na imagem que ele encontra o diferencial de narrativa e de sedução, como sugere o trailer de "Armadilha".

Há uma frase seminal em "O sexto sentido", mais sútil e lúdica do que o desabafo que o celebrizou ("I see dead people!"), na qual se aprende: "Na vida, algumas magias podem ser reais". Nos últimos 20 anos, período no qual estabeleceu-se como um dos realizadores mais ousados de Hollywood, mesmo quando a Meca do cinemão o esnobou, Shyamalan - nascido em Mahé, Pondicherry, na Índia, em 1970 - nunca abriu mão da crença no mágico, no fantástico, no ilusório. Até "Sinais" (2002), com Mel Gibson, a fantasia tinha lugar encantador em sua filmografia. Depois de "A vila" (2004), sua obra-prima, ilusão passou a simbolizar opressão em seu autoralíssimo cinema, de uma carpintaria que sempre se apegou a sutileza. Não por acaso, seu olhar passou a gravitar para o suspense. Em Shyamalan, tempo é incerteza. "Tempo", o filme, seu filme, é uma iguaria. Das mais saborosas. O mesmo se deu com "Batem à Porta". O mesmo se espera de "Armadilha".