Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Robertinho, o arlequim brasileiro da França

Robertinho: 'Deixei um Brasil assimétrico, sem ordem e sem progresso, e com falta de oportunidades. Sai com o desejo e a determinação de vencer através da minha arte' | Foto: Daniel Zarvos/Divulgação

Centrado na dramaturgia geopolítica dos muitos sufocos e eventuais sucessos que regem a vida de um imigrante latino em solo europeu, "Madeleine à Paris" é um retrato audiovisual das lutas, do sonho e das performances do baiano Roberto Chaves, o Robertinho, multiartista brasileiro queer, andrógino, do Candomblé.

Há mais de três décadas, ele encanta Paris com sua arte. O filme de Liliane Mutti, previsto para estrear ainda este ano no país, traz um olhar sensível sobre um performer que carrega a brasilidade para os palcos. A cineasta acompanhou seus passos ao longo de seis anos, registrando seu modo singular de contagiar plateias. Ele também arrebatou a cinefilia francesa durante a projeção do filme no 26º Festival do Cinema Brasileiro, no Cinema Utopia Bordeaux, no início do mês.

"Ao sair de Santo Amaro da Purificação, minha cidade amada, no brotar da minha juventude, em 13 de julho de 1990, deixei amores, amigos e uma família de 16 irmãos. Era um Brasil de portas fechadas para a inclusão, sem perspectivas, com um demasiado índice de violência contra a comunidade LGBTQIPA situação que me dava medo... e uma imensa vontade de sair fora", lembra Robertinho, em entrevista ao Correio da Manhã. "Muitos amigos gays precisavam se esconder e muitas vezes atentaram contra a própria vida, como forma de escapar da triste realidade de se assumir diante de uma sociedade preconceituosa. Deixei um Brasil tropical de clima privilegiado de que sinto muita saudade. Mas era um país nada favorável para que um jovem preto de família humilde, como eu, pudesse viver com tranquilidade. Fui em busca da realização dos meus sonhos, e de me tornar um artista com sucesso. Deixei um Brasil assimétrico, sem ordem e sem progresso, e com falta de oportunidades. Sai com o desejo e a determinação de vencer através da minha arte".

Convidado para ir à Paris pela primeira vez quando ainda era office boy, Robertinho é o idealizador da mais importante tradição afro-brasileira na Europa, a "Lavagem de Madeleine", que, há mais de duas décadas é símbolo da cultura brasileira no país. Esse cortejo acontece há 22 anos em Paris, inspirado na Lavagem do Senhor do Bonfim, e abre o calendário do verão europeu. A festividade começa na Praça da República de Paris e vai até a Igreja da Madeleine, onde se lava a escadaria da igreja.

"É muito difícil descrever o sentimento da minha saudade, a melhor forma de tradução e de comparar minha saudade como a de um filho órfão de mãe. A impressão que continuo sentindo até hoje é de que está sempre me faltando algo", diz Robertinho. "A realidade é que eu saí do Brasil, mas ele não saiu de mim, as vezes me pego chorando de saudade de Santo Amaro e dos meus domingos em família. Sinto que a representatividade da minha arte é um modelo sensível de tantos outros Robertinho negros pelo mundo a fora. Com minha arte eu pude expressar todo meu aprendizado adquirido na escola da vida, durante minha infância no Recôncavo Baiano, passando pelos palcos da Escola de Teatro, em Salvador, consolidando-se ao chegar em Paris, no cabaré francês Paradis Latin, onde trabalho há mais de 30 anos".

No filme, assistimos Robertinho como um orixá do cortejo da Lavagem e, à noite, vemos sua outra faceta, com sua fantasia e performance de arlequim, no Cabaré Paradis Latin.

"O que me encantou e me encanta do Robertinho é como esse brasileiro foi capaz de colocar o bloco na rua na capital francesa, inventando uma nova tradição", diz Liliane Mutti. "Ao mergulhar no personagem, fui descobrindo facetas um tanto veladas, como o fato de que a noite ele trabalha como arlequim em um cabaré, performando muito antes do termo queer ser usado. Interessa-me esse transitar entre gêneros, que desconstrói verdades socialmente construídas. Em uma fala do filme, o personagem diz: 'não precisei me prostituir, respeito muitas prostitutas, mas esse não foi o meu caminho. Nem fazer a limpeza aqui na Europa, como muitos brasileiros precisam fazer'. Essa fala diz muito sobre os brasileiros e as brasileiras reais, que migram por questões socioeconômicas, nessa diáspora que manda dinheiro para família do Brasil. Robertinho consegue fazer isso com a sua arte. O filme coloca ele no lugar de um vencedor diante dessa máquina de moer gente que é o processo de colonização, não superado, que ecoa ainda nessas relações".

No filme, a musicalidade tem um aspecto dionisíaco.

"No 'Madeleine', a música aparece como signo e como surpresa no final. Começo meus filmes sempre pela playlist e é também uma das primeiras coisas que faço quando preciso apresentar uma ideia de filme, em um laboratório ou pitch, por exemplo. Tudo é música. Assim vejo e sinto", diz Liliane. "No 'Madeleine' a trilha sonora original é feita por dois músicos brasileiros radicados na França que muito admiro, o Phillipe Powell, especialmente no piano, e yko (escrito assim em minúsculo mesmo), um músico inventivo, que traz para o filme efeitos sonoros e percussão".

Segundo Robertinho, sua é arte como um mundo sem fronteiras, autêntico, completamente baseada no toque de uma brasilidade vanguardista, que foi recebida pelos europeus com muito carinho e prazer. "Procuro fugir dos clichês, gosto de inovar respeitando as tradições que me deram base para a construção da minha arte. Fora o problema da insegurança, acredito que o Brasil está indo em uma boa direção, com essa nova gestão do país. Hoje minha arte é vista por um Brasil de esperança", diz Robertinho. "O que vai resolver o desequilíbrio brasileiro chama-se educação, é preciso tirar as crianças das ruas e colocar na sala de aula, é preciso que a escola seja tempo integral como é aqui na Europa. Um Brasil com educação e segurança será o melhor lugar do mundo para se viver".