Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Palmas para 'O Pagador de Promessas'

Leonardo Villar como o Zé do Burro em 'O Pagador de Promessas' | Foto: Divulgação

Encenada em 1960, pelo Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, sob a direção de Flávio Rangel, "O Pagador de Promessas" foi traduzida em dez línguas e encenada em 15 países, levando as inquietações sociais de seu autor, Alfredo Dias Gomes (1922-1999), para o mundo.

Desde sexta-feira, o espetáculo vem sendo citado nas apresentações de Othon Bastos em "Não Me Entrego, Não!", de Flávio Marinho, no palco do Teatro Vannucci, no Shopping da Gávea. Ele fez parte da adaptação cinematográfica homônima da peça que, lançada em 1962, conquistou para o Brasil a Palma de Ouro do Festival de Cannes - a única que temos.

Às 21h, desta quarta, quem passar pelo Estação NET Botafogo vai poder conferir as razões que levaram o longa-metragem de Anselmo Duarte (1920-2009) a vencer na Croisette. Haverá uma projeção especial do filme em tela grande. É uma forma de entender as polêmicas que cercam sua consagração.

No ano de seu lançamento, o Cinema Novo já apresentado seu cartão de visitas com "Barravento", de Glauber Rocha; "Os Cafajestes", de Ruy Guerra; e o coletivo de "Cinco Vezes Favela". Diante dessa nova turma, com a proposta de uma revolução estética que estendesse a dimensão revolucionária do cinema também para a forma, o projeto de drama sociológico de Dias Gomes, à luz da direção clássica de um ator como Anselmo, soava algo antigo. Isso para alguns.

Para outros, como o júri chefiado pelo poeta e diplomata Tetsuro Furukaki, o Zé do Burro de Leonardo Villar foi um ícone da catarse moral inerente ao fundamentalismo.

Mas outros títulos que ganharam Cannes também provocaram convulsões. O ganhador deste ano, "Anora", de Sean Baker, despertou amores de modo mais unânime. Porém, três anos atrás, "Titane", de Julia Ducournau, gerou rachas. Lançado no Brasil diretamente na streaminguesfera, na plataforma MUBI. Por onde passou o thriller sobre uma assassina com placas de titânio no corpo, que fica grávida de um carro (!) e expele óleo diesel da vagina (!!), foi visto com estranheza, sem harmonizar as opiniões de seus espectadores. Cannes dividiu-se num Fla x Flu tipo "Amei" x "Odiei" ao fim de sua projeção. San Sebastián viveu a mesma situação. O Festival do Rio, idem. Houve gente saindo das sessões quando, sua protagonista, Alexia (Agathe Rousselle) bate o próprio rosto contra uma pia, a fim de deformar seu nariz. Deformar-se é parte da reinvenção pela qual a personagem há de passar quando se assume, sem culpa, como serial killer, dando um ponto final à existência de homens que passam dos limites na aproximação a ela e dando um adeus a mulheres que não reagem a seus carinhos furiosos como ela espera. E ela mata usando um pau de cabelo como arma. É indigesto (para alguns) torcer por ele. E mais indigesto ainda é lidar com a brutalidade que a cerca.

 

Outras premiações polêmicas

Confira, abaixo, outros casos de títulos premiados que criaram muita polêmica ao longo dos 77 anos de história do tradicional festival francês, criado em 1939:

"A CLASSE OPERÁRIA VAI AO PARAÍSO", de Elio Petri, empatado com "O CASO MATTEI", de Francesco Rosi, em 1972: O culpado por esse empate foi o cineasta Joseph Losey, que fez história em Cannes ao premiar não dois (belíssimos) filmes, mas, sim, um conceito: o cinema político, a estética de guerrilha, a tradução audiovisual da "poesia de protesto". Era uma forma de filmar que os italianos faziam melhor do que ninguém, tendo um ator como divo Gian Maria Volontè. Mas os dois longas fizeram uma carreira invejável nas bilheterias internacionais.

A MISSÃO, de Roland Joffé, 1986: Foz do Iguaçu tem até hoje figurinos, indumentários e partes dos cenários usados nas filmagens deste épico indigenista sobre uma expedição jesuítica à América do Sul que lutou para proteger uma civilização dos povos originários da violência colonizadora. A trilha sonora de Ennio Morricone é um patrimônio da história da música. Que o filme é bonito, não resta dúvida. Mas daí a considerá-lo mais relevante do que "O Sacrifício", o canto do cisne de Andrei Tarkovsky, não dá. Mesmo.

PULP FICTION, TEMPOR DE VIOLÊNCIA, de Quentin Tarantino, em 1994: Nem o presidente do júri, Clint Eastwood, ficou plenamente convencido da força dessa narrativa em três segmentos com um introito em restaurante, esboçando, em meio a um papo de casal um assalto. Houve quem reclamasse de que Cannes estava se rendendo ao pop. Mas o que o júri, de modo geral, à revelia de Clint, percebeu, é que ali havia uma nova modalidade dramatúrgica que incorporava o que havia de mais trivial para propor uma nova estética.