Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Denys Arcand: 'Os jovens parecem não saber ouvir'

Denys Arcand | Foto: TVA Films

Mundialmente aclamado há 20 anos, quando ganhou o Oscar com "As Invasões Bárbaras", o canadense Denys Arcand transformou suas preocupações acerca da cultura woke no objeto de "Testamento", seu melhor filme em duas décadas, que chega neste fim de semana ao circuito. Com a ironia que lhe é peculiar, o realizador de 83 anos, narra os dilemas do arquivista, Jean-Michel Bouchard (Remy Girard, em estonteante atuação) diante de uma campanha pública para a destruição de um quadro que adorna a instituição onde vive. A pintura traz uma representação do encontro entre indígenas e colonizadores, o que irritou grupos formados majoritariamente de jovens. Outro alvo deles é a dramaturgia de Bertolt Brecht.

"Para quem cresceu lendo Platão e Sófocles, essa fúria desses grupos gera alerta, pois ela me deixa preocupado com o futuro", diz Arcand, que lembra com carinho de sua passagem pelo Rio. "Estive aí no passado, faz décadas já, e me lembro com carinho da cidade".

Na entrevista a seguir, o realizador revisita marcos da ciência política ao falar dos pleitos dos novos tempos.

O senhor já falou algumas vezes que o papel de um artista é prever os perigos do amanhã. Que perigos cerca a cultura woke e o cancelamento?

Denys Arcand: É necessário cautela. Isso se perdeu. Artistas conseguem perceber riscos futuros. Essa percepção não pode se perder quando o que está em jogo é a destruição de uma pintura para atender a demandas de um determinado grupo político. Quando uma peça de Brecht é descartada, por ela falar sob a perspectiva de uma mulher chinesa, embora escrita por um homem branco alemão, é necessário que a gente repense valores. Assim como é preciso estarmos alertas ao fato de livros serem substituídos por videogames.

Apesar desse senso de cautela, o senhor vê algo de positivo nesses revisionismos?

Vejo muita coisa boa, principalmente pelo fato de essa movimentação ter dado voz a quem não tinha. Causas como as lutas femininas ganharam uma visibilidade mais do que urgente. A mudança que se passou com o mundo era necessária. Mas daí a protestar contra Brecht...

Seus filmes anteriores, sobretudo "As Invasões Bárbaras", carregam uma força marxista aparente. Mas qual é o espaço para Marx em "Testamento"? O senhor ainda lê Marx?

Como um estudante de História, eu sempre considerei Marx importante. Numa linha histórica dos grandes pensadores alemães, ele se alinha com Kant e Hegel. Foi um gênio quando descobriu que a luta de classes era um motor das relações sociais. Mas eu discordo dele quando ele põe a economia como o principal eixo de transformação histórica. Nessa sua convicção, ele escanteia a política e a cultura. O que move hoje os conflitos em Gaza não são fatores econômicos mas, sim, a religião, que é um elemento cultural. O fundamentalismo islâmico não é econômico.

Mas Jean-Michel Bouchard, o protagonista de "Testamento", também pensa assim?

Ele é de uma geração que reconhece a importância de Marx. Logo, sim. Mas é alguém que enxerga o saldo da turbulência nas ações do movimento woke e perecebe o quanto os pleitos desse grupo podem afetar a vida de um aposentado como ele.

De certa forma, "Testamento" parece ser também um filme sobre a velhice, sobre os efeitos do tempo nas mentes e nos corpos. Como o senhor lida com a arte de envelhecer?

Não me importo de ser velho. Meu corpo já não é mais tão fiel às minhas vontades, mas estou satisfeito com ele. O que me dói é olhar a juventude de hoje e sentir que ela não é mais capaz de escutar opiniões diferentes. Um dia desses uma jovem disse que não gostou do meu filme. Eu perguntei o porquê e ela disse: "Eu não vi. Não vi e não vou ver, mas não gostei porque ele é conservador". Essa atitude me preocupa. Os jovens parecem não saber ouvir.

Uma vez mais, seu papel principal é confiado ao ator Rémy Girard. Ele é seu alter ego?

Certa vez, eu vi Rémy no teatro e pensei: "Como esse cara diz bem os diálogos. No dia em que eu fizer um filme, vou chamar ele para trabalhar". Não deu outra. Mas agente não é tão próximo. Só nos vemos às vezes. Daí, a cada dois ou três anos, eu ligo pra ele e digo: "Escrevi um filme aqui e tenho um papel para você". Nossa relação é como Mastroianni e Fellini ou como John Ford e John Wayne ou como Max von Sydow e Bergman. Ele sabe expressar tudo o que eu quero falar.