Um dos pilares da linguagem cinematográfica moderna da Itália, na geração que herdou as inquietações sociais do neorrealismo, Marco Bellocchio, hoje com 84 anos, vem ocupando diferentes espaços nas vitrines audiovisuais do Brasil. Integra a mostra 8 ½ Festa do Cinema Italiano, com "O Sequestro do Papa" ("Rapito"), que vai estrear no dia 18 de julho. Está na grade da Amazon Prime com "O Traidor" (2019).
Tem ainda uma retrospectiva, chamada Moral e Beleza, em cartaz na plataforma MUBI. Por lá estão curtas-metragens como "La Lotta" (2018), "Per Uma Rosa" (2017) e "Pagliacci" (2016), e os longas "Marx Pode Esperar" (2021) e "Salto no Vazio" (1980). É uma seleção de peso para conhecer sua estética.
"Sou um cineasta atento ao silêncio, que busca um entendimento da dimensão trágica da quietude, mas que, aqui, encontro uma situação na qual palavra é ação", disse Bellocchio ao Correio da Manhã ao exibir "O Sequestro do Papa" na competição pela Palma de Ouro de Cannes, em 2023.
Essa suntuosa produção é baseada no escandaloso episódio verídico envolvendo um menino judeu, Edgardo Mortara, que foi sequestrado da casa de sua família em Bolonha, em 1858, por ordem do Papa Pio IX. Durante anos os pais dedicam seus esforços para recuperar o menino, mas, apesar dos apelos desesperados da família e da indignação pública, o Papa permanece irredutível na decisão de não devolvê-lo, o que caracteriza um dos casos mais polêmicos de antissemitismo da História. A história deles revela um capítulo sombrio da tirania histórica na Igreja - tema constante de Bellocchio - tendo como pano de fundo um país à beira de uma revolução.
"Dogmas da hipocrisia persistem no tempo", disse o realizador. "Existe um olhar nos meus filmes de quem viu o fascismo ascender, e o abuso do poder tem muitas formas. O que se vê na história de Mortara é a traição do lugar supostamente acolhedor e tolerante da religião".
Um dos maiores sucessos de público de Bellocchio, "O Traidor" revive fatos reais do passado do mafioso Tommaso Buscetta (1928-2000), que tem Maria Fernanda Cândido numa atuação de destaque, em cenas rodadas no Rio de Janeiro. Mais próximo dos thrillers políticos de Costa-Gavras (como "Z") que do tom épico de tintas românticas dos gângsteres de "O poderoso chefão" (1972) e que da criminalidade ordinária de "Os bons companheiros" (1990), o longa do mestre italiano fez o 72º Festival de Cannes, em 2019, repensar suas certezas sobre o Velho Mundo, sobre o Brasil da ditadura militar e sobre os clássicos de máfia das telas. Com suas transgressões para fatos históricos antes encarados como certezas inquestionáveis e para clichês celebrizados por Hollywood, o imperdível filme do realizador de "Vincere" (2009) e "De Punhos Cerrados" (obra-prima de 1965 recém-relançada na plataforma MUBI) colecionou fãs. Produzido pelos irmãos Fabiano e Caio Gullane, rodado parcialmente em terras cariocas e estrelado por talentos brasileiros como Luciano Quirino, Jonas Bloch e Maria Fernanda (em estado de graça), o thriller revive os dias em que Tommaso Buscetta fez o Brasil de lar, no abraço sempre caloroso de sua mulher, a carioca Maria Cristina de Almeida Guimarães. Ela é vivida por Maria Fernanda. Tommaso foi confiado ao romano Pierfrancesco Favino (visto em "Guerra Mundial Z" e "Anjos e demônios"). O ator estrelou faz pouco tempo o ótimo "A Última Noite de Amore", que será exibido hoje, às 21h50, no Cinesystem, na já citada mostra 8 ½.
Na resenha da "Variety" sobre "O Traidor", o crítico Jay Weissberg ressalta a fotografia de Vladan Radovich para ampliar a beleza de paisagens cariocas como as areias de Grumari e para aumentar a voltagem das cenas de ação. Uma explosão de um carro, filmada sob a ótica do motorista, é um dos planos mais debatidos de todo o festival. O clima de tensão se estende ainda para as cenas da vida a dois de Buscetta e Cristina, pelas inesperadas intervenções da polícia e adversários de submundo na rotina deles.
Uma das cenas mais tensas de "O Traidor" traz Cristina, personagem de Maria Fernanda, pendurada em um helicóptero, sendo ameaçada pela polícia para que Buscetta confesse seus crimes. Parceiro da atriz, Pierfrancesco rasgou-se em elogios à sua coragem: "Ela é de uma generosidade sem tamanho e de um profissionalismo ímpar", elogiava o ator. "Ela se doava para dar à personagem de Cristina profundidade, movendo aquela figura impávida quer era Buscetta".
Bellocchio tem um roteiro inédito, "La Vita Accanto", que será levado às telas ainda este ano.