Sempre que Eddie Murphy regressa às paradas de sucesso, com aquela verborragia hilariante responsável por sua fama na década de 1980, o público brasileiro que cresceu com a "Tela Quente", a "Sessão da Tarde" e a "Temperatura Máxima" sabe que sua voz, em português, vai chegar carregada com um tom de malandragem que só Mário Jorge sabe dar. Aos 71 anos, na ativa desde 1977, o ator - carioca de Madureira - já encarnou o astro americano numerosas vezes, a se destacar a colossal interpretação de "O Professor Aloprado" (1996), no qual Murphy se divide em vários personagens. Desde ontem, o dublador que é um parâmetro de excelência em sua classe vem emplacando novos fãs com seu desempenho em "Um Tira da Pesada 4: Axel Foley", na Netflix. Ainda este mês, ele será ouvido por lá na nova temporada da série "Cobra Kai", na qual foi escalado para ceder o gogó a Johnny Lawrence, carateca vivido por William Zabka.
Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã
Mário Jorge, um dublador da pesada
'No início, eu fiquei assustado com o ritmo dele, que é muito violento'
"Os streamings aumentaram bastante o trabalho da gente e a promoção que a Netflix está fazendo em torno de 'Um Tira Da Pesada', tendo inclusive disponibilizado os filmes anteriores em seu catálogo, é algo fabuloso. Eles sabem quando um produto é bom e sabem como botá-lo na rua", comemora Mário Jorge, um dínamo da arte da dublar, que assumiu Eddie Murphy como seu "boneco" em meados dos anos 1980.
"No início, eu fiquei assustado com o ritmo dele, que é muito violento. Murphy te atropela com suas inflexões e palavrões. Mas eu uso muito Mário Jorge nele. Jogo nele meu jeitão carioca de ser", explica o ator e dublador.
Não por acaso, na década de 1990, Mário Jorge foi eleito pelo próprio Murphy seu melhor dublador em uma enquete com vozes do mundo todo. "Eu ia ganhar como prêmio um encontro com ele... na casa dele. Estava quase rolando, mas bateu na trave. Ia rolar uma avant-première com ele agora, pelo novo 'Tira da Pesada', mas como ele já está filmando outro longas, não aconteceu. Ou seja, bateu na trave de novo. Se houver outra oportunidade, aí a bola entra".
Reapresentado às novíssimas gerações em desenhos como "Titio Avô", Mário Jorge é um defensor da riqueza da Flor do Lácio na hora de dublar. "Você tem que passar de maneira sutil um português bem falado, ainda que procurando a gíria da atualidade. Não adiante usar em Eddie Murphy gírias de antigamente, que não colam mais", destaca. "Eu sou do tipo que corrige o texto dos filmes. Um dia desses fui dublar um advogado e havia uma concordância errada na tradução. Eu falei para o diretor que ia alterar e ele pediu para eu me ater ao texto como estava. Aí falei: 'Então me tira do filme'. A dublagem ensina as pessoas a falar direito. Eu só aceito falar errado num papel: o Tom Mate, de 'Carros', que é um caipirão. Ali é um tipo, não é um erro", acrescenta.
Primeiro ator a dublar Luke Skywalker no Brasil, nas transmissões nacionais de "Star Wars - Episódio IV: Uma Nova Esperança" (1977), Mário Jorge é também a voz oficial de John Travolta no país. Seu séquito de fãs cresceu sobretudo por seu trabalho em animações, dublando Mushu, em "Mulan", e o Burro Falante de "Shrek" (interpretado lá fora por... Eddie Murphy), que vai ganhar um filme solo. Aliás, um quinto "Shrek" está a caminho.
É mais um trabalho que vai ampliar a popularidade do dublador, que mobiliza multidões em feiras de cultura nerd. "Um dia desses, fui a um batizado, em Búzios, onde ninguém, à exceção do pais da criança, sabia a minha profissão. Tinha uma garotada lá... uns 14 adolescentes de uns 16, 17 anos, mais ou menos. Uma hora, o pai de um deles falou quem eu era. Pronto! Acabou a festa. Não conseguia mais ir embora do tanto de gente que vinha me pedir foto, abraço... Quando eles souberam que eu fazia 'Cobra Kai' então...", diz o ator, que começou a carreira dublando Larry Hagman (o J.R. da série "Dallas") no telefilme "A Volta do Maior Detetive do Mundo".
"No início, Orlando Drummond (a voz de Popeye e do Scooby-Doo) foi um dos dubladores que mais me deram força. Sou de uma época em que as pessoas dublavam todas juntas na bancada. Eu tinha alguns dos maiores atores do país do meu lado: Jomeri Pozzoli, Juraciára Diácovo, Nelly Amaral, Orlando Prado, Magalhães Graça... Eu nunca fiz curso de ator, nem de diretor. Na vida, você tem que ter uma comunhão entre talento e sorte e, no meu caso, sou muito abençoado por Ogum".
Além da enorme potência estética que tem, somada a um carisma único, Mário Jorge hoje conta com a força da experiência.
"Pensando sobre 'Cobra Kai', eu lembro que dublei Johnny Lawrence no primeiro 'Karate Kid', há 40 anos. Fiquei décadas sem fazer esse personagem até que o reencontrei. Embora ele ainda continue com as mesmas doideiras da juventude, ele amadureceu. Eu também", diz Mário Jorge. "A gente só vê o que vai dublar na hora. Aos poucos, a gente vai entendo como os personagens são e compreendemos qual é a deles".