Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Sob o rugido do Leopardo de Ouro

Exibição lotada na Piazza Grande confirma a força popular do Festival de Locarno | Foto: Divulgação Locarno Film Festival

 

Estabelecido há quase oito décadas como um sinônimo de descobertas audiovisuais, o Festival de Locarno, na Suíça, vive uma fase de reciclagem política e estética na qual sua relevância vai a um patamar que há muito tempo não alcançava. Prestes a chegar aos 77 anos, no dia 7 de agosto, quando abre suas atividades com homenagens à dupla campeã de bilheteria Guillaume Canet e Mélanie Laurent, o evento hoje parece um adolescente, cheio de vigor.

Essa aparência não se trata de questões de maturidade - cada vez mais plena -, mas, sim, de jovialidade, que jorra, garantida pela seleção - sempre simpática ao Brasil - promovida pelo curador Giona A. Nazzaro. Há três anos, esse crítico de Zurique assumiu a direção artística do evento, que já havia premiado Hector Babenco, Murilo Salles, Juliana Rojas e Marco Dutra. Deu a ela uma nova (e mais) pop formatação, aberta ao cinema de gênero, a cineastas que flertam com a estética dos filmes B e a vozes que ecoam o real.

Em 2022, seu menu sortido garantiu láureas a "Regra 34", de Julia Murat (rodado no RJ), e a "Big Bang", de Carlos Segundo (feito na ponte Rio Grande do Norte - MG). Desde que ele chegou, medalhões da direção sempre têm vez lá.

Este ano, na competição oficial, há dois gigantes asiáticos: o chinês Wang Bing e o sul-coreano Hong Sangsoo. O primeiro concorre com o documentário "Youth (Hard Times)" e o segundo com o drama "By The Stream". Foi selecionada uma coprodução do Brasil com a Alemanha, a França, a própria Suíça e a Tailândia chamada "Transamazonia", com direção da sul-africana Pia Marais. Integram ainda o certame "Timestalker", de Alice Lowe; "Bogancloch", de Ben Rivers; e "Der Spatz im Kamin", de Ramon Zürcher. Essa turma será julgada por um time presidido pela cineasta austríaca Jessica Hausner (de "Clube Zero").

"Um filme é mais do que só um filme quando é visto num festival", disse Nazzaro ao Correio da Manhã. "Eventos como Locarno, ao vivo, em coletividade, estão lotados. No caso do cinema em circuito, vejo hoje pessoas comprarem ingresso para rever "Barbie". Festivais, em si, não podem fazer muito para encher salas e tampouco devem servir como instrumentos de promoção. O papel que precisamos ter é servir como um propulsor de debates culturais".

Ele foi eleito para Locarno em meio à pandemia e assumiu em 2021 revolucionando seções que estavam cheirando a mofo com novas provocações, apostando em thrillers, sci-fi, comédia e melodramas. Para a abertura desta edição ele trouxe "Le Delúge", suntuoso drama francês sobre os últimos dias de Luís XVI e Maria Antonieta, vividos por Canet e Mélanie.

Para as sessões da Piazza Grande, a praça central da cidade, Nazzaro convocou o mais premiado dos longas-metragens do último Festival de Cannes: o iraniano "The Seed of The Sacred Fig", do iraniano Mohammad Rasoulof. O filme saiu da Croisette com o Prêmio Especial do Júri, o Prêmio do Júri Ecumênico e o Prêmio da Crítica. O cineasta está condenado à prisão em sua terra natal pelas críticas de seus filmes ao regime vigente por lá. Na trama, um juiz entra em paranoia ao se sentir perseguido e começa a se voltar de forma violenta contra suas filhas e sua mulher. "Venho de uma cultura submetida à tirania, pois o Estado Islâmico é capaz de tudo", disse Rasoulof em Cannes. "Por que meu governo tem tanto medo das histórias que contamos?", questiona.

Ao 52 anos, o realizador, egresso de Xiraz, precisou fugir de sua pátria para conseguir expressar sua voz autoral pelo mundo, tendo seu passaporte confiscado pelas autoridades do Irã, que o considera uma ameaça à integridade nacional. "Dei instruções à equipe para que terminasse o filme caso eu fosse preso. Quando a sentença de que eu seria detido saiu, fui para casa e me despedi das minhas plantas, depois dei um jeito de sair", explicou o diretor, que por já ter sido trancafiado antes conhecia meios não tão legais de escapar, por rotas alternativas que o levaram à Alemanha. "Este é um filme sobre doutrinação, sobre o que acontece quando você deixa alguém, ou alguma ideologia tomar conta de sua mente", disse o realizador, que ganhou o Urso de Ouro de 2020 com "Não Há Mal Algum". "Não tenho medo da intimidação".

Em suas retrospectivas, Locarno prepara uma homenagem aos cem anos da Columbia Pictures e exibe "Mulher de Verdade" (1954), de Alberto Cavalcanti (1897-1982). Em seu rol de tributos, o festival helvético destina troféus honorários para a diretora Jane Campion e para a atriz Irène Jacob.