Embora não tenha recebido ainda detalhes do filme sobre Jesus Cristo que Martin Scorsese está preparando, Thelma Schoonmaker sabe que fará parte dessa nova homilia do realizador de "Taxi Driver" (Palma de Ouro de 1976) por ser a montadora oficial dele. Não por acaso deu ao parceiro de trabalho e amigo fiel de cinco décadas a tarefa de narrar o documentário "Feito Na Inglaterra: Os Filmes de Powell e Pressburger" ("Made In England: The Films Of Powell And Pressburger"), hoje na MUBI.
Produzido por ela e dirigido por David Hinton, o delicado longa-metragem, lançado na Berlinale, em fevereiro, e já disponível no www.mubi.com, é um curso de História a partir dos feitos de Michael Powell (1905-1990), lendário cineasta britânico, celebrado por sua longa parceria com o húngaro Emeric Pressburger (1902-1999). Thelma viria a se casar com Michael em 1985. A relação foi apadrinhada por Scorsese, entusiasta da obra do coautor de "Os Sapatinhos Vermelhos" (1956), cuja carreira ajudou a ser redescoberta, nos anos 1970.
Ganhadora de três Oscars, conquistados pelas montagens de "Touro Indomável" (1980), "O Aviador" (2004) e "Os Infiltrados" (2006), Thelma conversou com o Correio da Manhã no Festival de Berlim e falou dessa história de amor e das trocas com Scorsese, a quem chama carinhosamente de Marty.
Ao analisar uma obra poética como a de Powell, feita entre os anos 1930 e os anos 1970, como a senhora avalia a evolução da montagem no cinema autoral?
Thelma Schoonmaker: Hoje o que eu vejo é uma aposta no corte rápido, numa edição compacta e não numa montagem mais reflexiva. Cada filme pede um tipo de corte, que é ditado pela visão que cada diretor tem da realidade. Scorsese, por exemplo, deu ao mundo um novo estilo de narrar que vem lá do fim dos anos 1960, quando nos conhecemos, e chegou até "Assassinos da Lua das Flores" (hoje disponível na Apple TV), seu trabalho mais recente. Powell tinha um modo de olhar no qual buscava que seus filmes pudessem ser compreendidos no mundo todo sem legendas, pela força da imagem. Basta ver o que ele faz em filmes como "Coronel Blimp: Vida e Morte", de 1943. O que David Hinton e eu buscamos nesse exercício documental sobre ele e Pressburger foi condensar um pouco da ótica dos dois.
Como se deu essa condensação?
Buscamos muitas imagens de arquivo e construímos um roteiro a partir do muito que Powell falou ao longo dos anos. Aí Marty entrou, trazendo sua visão de fã. Quando terminamos "A Última Tentação de Cristo", em 1988, Marty me pediu para mostrar o corte final ao meu finado Michael, a quem ele amava muito. Michael adorou o trabalho de Marty em "Caminhos Perigosos" e dizia que era um filme para ser exibido sempre na TV. Fizemos a projeção e Marty passou o tempo todo colado na poltrona, em pânico. Quando as luzes se acenderam, Powell estava chorando e olhou para Marty com lágrimas de comoção nos olhos. Você não pode imaginar a expressão de felicidade que Marty fez, sentindo-se aceito, aprovado por seu mestre. Foi uma experiência comovente.
Como funciona a prática de criação de seu trabalho com Scorsese?
Temos uma dinâmica. Ele filma o que quer, manda as sequências enquanto ainda está no set e eu vou montando um primeiro corte que já é concebido para ser desfeito. É uma espécie de rascunho. Eu já monto com a certeza de que aquilo vai ser recriado por ele, contudo, quanto mais sólido for este primeiro corte, quanto mais essa "versão" estiver próxima da maneira como Marty encara o mundo, mais subsídios ele terá para aproveitar o tal rascunho como base de trabalho. Marty sabe editar, e monta muito bem. Aliás, a parte do ofício do cinema que ele mais gosta é a ilha de edição, pois, ali, não tem mais a tensão do set, não tem ator com o qual ele precisa se preocupar. Na ilha de montagem, ele se alivia... e cria. Marty senta e monta comigo, trocando ideias. Quando discordamos, oferecemos opções de encaixe um ao outro e chegamos a um equilíbrio.
A senhora começou seu trabalho como montadora editando filmes para a televisão. Como foi essa escola?
Meu trabalho era cortar filmes, por vezes os clássicos do neorrealismo, para que eles coubessem na grade da TV aberta em Nova York. Os editores por vezes cortavam um rolo inteiro fora para facilitar a montagem, mas eu tinha a preocupação de que isso viesse a prejudicar o entendimento dos filmes. Editava por dentro, com cuidado, para que aqueles longas não perdessem a sua essência. Até hoje eu tenho esse cuidado.