Periódicos de respeito como a "IndieWire" e associações de crítica respeitadas publicaram nas últimas duas semanas enquetes sobre o que de melhor se viu em circuito internacional desde que janeiro começou. Alguns dos votos foram para filmes de 2023 que só estrearam em salas comerciais quando o ano começou. Um ano que encontrou em "Divertida Mente 2" seu mais expressivo sucesso comercial com a marca (até agora) de US$ 1,3 bilhão na venda de ingressos global. O cinema brasileiro abriu o ano muito bem, à força do fenômeno "Minha Irmã e Eu" e seus 2 milhões de pagantes mas vive dias de azedume, com plateias reduzidas, suando para vender cerca de 10 mil tíquetes. Numa triagem por um cenário de incertezas, o Correio da manhã levanta uma lista dos títulos que alimentaram a voltagem estética de 2024 no cinema.
TESTAMENTO, de Denys Arcand: Cerca de 21 anos depois de "As Invasões Bárbaras", o artesão autoral canadense enfrenta patrulhas ideológicas da contemporaneidade numa ácida cartografia da cultura woke. Com a ironia que lhe é peculiar, o realizador de 83 anos, narra os dilemas do arquivista, Jean-Michel Bouchard (Remy Girard, em estonteante atuação) diante de uma campanha pública para a destruição de um quadro que adorna a instituição onde vive. A pintura traz uma representação do encontro entre indígenas e colonizadores, o que irritou grupos formados majoritariamente de jovens. Outro alvo deles é a dramaturgia do alemão Bertolt Brecht.
A PAIXÃO SEGUNDO GH, de Luiz Fernando Carvalho: Num "bloco do eu sozinho", radical, mas afetivo, Maria Fernanda Cândido brinda o cinema com seu talento e carisma numa atuação solo em que reage, com uma suavidade de gestos, ao texto de Clarice Lispector (1920-1977), publicado em 1964. A trama esbanja existencialismo: Depois de despedir a empregada, G.H. inicia uma faxina no quarto de serviço e vê uma barata. Enojada do inseto, ela decide esmagá-lo. Nesse gesto, diante da massa pastosa e branca da barata morta, ela embarca num processo de desmontagem de sua condição humana.
LOVE LIES BLEEDING - O AMOR SANGRA, de Rose Glass: Uma analogia com "Thelma & Louise" (1992), de Ridley Scott, e com "Gosto de Sange" (1984), dos irmãos Coen, ajuda a fazer deste thriller beeem sanguinolento um cult na grade da mostra Berlinale Special. Kristen Stewart vive uma gerente de academia de ginástica que se apaixona por uma fisiculturista (Katy O'Brien), que perde o juízo e o senso de brutalidade por amor e pelo uso abusivo de esteróides, que mudam seu corpo. Ed Harris rouba cada fotograma para si no papel do pai traficante de armas de Lou.
ANATOMIA DE UMA QUEDA, de Justine Triet: Ganhador da Palma de Ouro de 2023 e do Oscar de Melhor Roteiro Original deste ano, esta mistura de drama e thriller de tribunal extrai uma vigorosa atuação da alemã Sandra Hüller e alimenta um debate sobre sexismo na cultura contemporânea. Uma escritora e tradutora é acusada da morte de seu marido, que quebrou a cabeça ao cair do último andar de sua casa. Uma batalha judicial é encenada em torno de sua morte, levantando segredos de uma vida conjugal fraturada.
DIAS PERFEITOS, de Wim Wenders: Em Cannes, em 2023, o artesão germânico foi ovacionado por essa produção nipônica. Laureado com a Palma de Ouro de 1984 pelo cultuado "Paris, Texas", o cineasta alemão de 77 anos não alcançava tanta notoriedade com uma ficção desde "O Hotel de Um Milhão de Dólares" (Prêmio do Júri na Berlinale em 2000), dedicando-se mais a documentários, como "Pina" (2011) e "O Sal da Terra" (codirigido por Juliano Salgado, de 2014). Ao filmar em solo japonês, na terra de seu ídolo (o diretor Yasujiro Ozu), ele arranha o status de obra-prima à força de uma poética investigação sobre as belezas simples da vida, narradas a partir do cotidiano de um limpador de latrinas (papel que deu a Koji Yakusho o prêmio de Melhor Ator na Croisette) apaixonado por rock, em fitas K-7. Cannes deu a ela ainda a láurea do Júri Ecumênico.
ORLANDO, MA BIOGRAPHIE POLITIQUE, de Paul B. Preciado (França): Livros como "Um Apartamento Em Urano" (2020) e "Eu Sou o Monstro Que Vos Fala" (2022) fizeram dete cineasta estreante uma grife literária por trás da afirmação identitário dos corpos não binários. Por trás das câmeras, Preciado afirma sua condição de trans, num diálogo - entre narrativa documental e o ensaio - com a obra de Virginia Wolf. Ganhou o troféu Teddy (premiação queer de Berlim) e o prêmio especial da mostra alemã Encontros. Sua montagem é um achado.
MAL VIVER, de João Canijo (Portugal): Um merecidíssimo Prêmio do Júri na Berlinale há de trazer novos holofotes para um dos mais potentes artesões autorais lusos. Sua arena aqui é um hotel, que nos é apresentado pela perspectiva de suas donas e de suas funcionárias, com destaque para a atuação de Rita Blanco e Anabela Moreira. Um diálogo sobre o interesse de uma jovem em nadar, eletrificado por memórias de suas peraltices d'outrora (um beijinho num coleguinha de piscina), expõe o quão sutil é a carpintaria de escrita de Canijo, interessado em miudezas. São miudezas jamais cicatrizadas que, com o tempo, rasgam-se em feridas existenciais largas demais. A fotografia de Leonor Teles encapa as palavras do cineasta com uma luz austera.
BEEKEEPER: REDE DE VINGANÇA, de David Ayer: O primeiro blockbuster de 2024 é um filme de ação raiz, nas raias do gore, com Jason Statham em estado de graça, muito bem dublado por aqui por Armando Tiraboschi. Sua narrativa violenta coroa a estética bruta do realizador de "Esquadrão Suicida" (2016) e "Corações de Ferro" (2014). Sua narrativa começa aterrorizante. Nos minutos iniciais, uma idosa administradora de um fundo de assistência (Phylicia Rashad) é roubada por meio de um golpe digital armada por uma organização que limpa as contas bancárias de pessoas na terceira idade usando um vírus digital e hackeando sistemas. Mas para azar desse bando remotamente liderado por um ricaço problemático Derek Danforth (Josh Hutcherson), a personagem de Phylicia tem como seu melhor amigo um Apicultor. O título usado pela figura virtuosa vivida por Statham se refere a um ramo secreto do Serviço de Inteligência dos EUA que nem a CIA pode acessar. Num dado momento, Statham pergunta: "Você quer seguir a Lei ou você quer a Justiça".
GUERRA CIVIL, de Alex Garland: O presságio da nova Era Trump. Esta produção de US$ 50 milhões, dirigida pelo escritor responsável pelo cult "A Praia" (filmado por Danny Boyle em 2000), cartografa a América fraturada dos dias atuais na forma de uma distopia. Num amanhã próximo, do qual pouco se sabe, sobrou pouco dos EUA. Um conflito interno assolou o país. Sem explicar o que se passa ou dar informações dos ideais bélicos por trás de cada lado da trincheira, Garland nos oferece como protagonistas um grupo de jornalistas de índoles das mais diversas que cruzam estados até chegar à Casa Branca. Wagner Moura, em brilhante atuação, encarna um deles.
MAXXINE, de Ti West: Desde "Ataque dos Morcegos" (2005), o americano de Delaware Ti West vem construindo uma obra singular, cinéfila, parafraseando e homenageando movimentos e filões (quase sempre de linha B) que marcaram época nas telas. É o caso do western spaghetti, objeto dele em "No Vale da Violência", hoje na Netflix. Mas é pelas vias do horror, sobretudo na conexão com o slasher do fim dos anos 1970 e de toda a década de 1980, que ele mais ganhou notoriedade, e melhor talhou sua musculatura narrativa. Aqui ele compõe uma trilogia com "X: A Marca da Morte" e (o magnífico) "Pearl", ambos de 2022. Mia Goth é sua diva. Ele vive uma estrela pornô que encara as sujeiras de Hollywood para se firmar como estrela numa Los Angeles assombrada por um psicopata.