Neville D'Almeida chegou ao streaming. "A Dama do Lotação", fenômeno popular visto por 6.509.134 pagantes em circuito, está na Netflix, apresentando às novas gerações uma das estéticas mais patrulhadas e censuradas de todo o nosso cinema. Paralelamente à sua estadia na mais famosa das plataformas, o cineasta mineiro apresenta uma série de videoartes na mostra comemorativa no Estação NET Rio. Neste sábado (20), às 16h, a Casa França Brasil projeta em seu cineclube o cult que levou Neville ao Festival de Cannes, "Jardim de Guerra" (1969), seguida de debate com o diretor. Em meio ao resgate de seu legado, Neville investe em novos projetos, com "A Dama da Internet" e uma nova investida no universo de Nelson Rodrigues (1912-1980), de onde tirou "A Dama do Lotação", além de preparar uma instalação, aperfeiçoando suas técnicas de artista plástico. Na entrevista a seguir, ele antecipa o que vem pela frente.
Neste momento em que 'A Dama de Lotação' chega à Netflix, o cinema brasileiro sofre com uma das maiores crises de esvaziamento de público de sua história. Como você vê essa desconexão com as plateias?
Neville D'Almeida: Nosso público está sufocado pela produção estrangeira, com quase 90% do espaço exibidor tomado por Hollywood e outras produções internacionais. Tem canal que só faz falar de bastidores dos filmes hollywoodianos. É um bombardeio mental.
Mas você vê alguma reação por parte do nosso cinema?
Vivemos no país uma política do 'Um edital na mão e nenhuma ideia na cabeça'. Tem muita gente que não conhece a história do nosso cinema trabalhando, e de forma colonizada. Até os grandes festivais - Cannes, Veneza e Berlim - se colonizaram por Hollywood e, quando abrem para outras estéticas, só recebem os mesmos amiguinhos. Pelo que eu vejo hoje, tenho a sensação de que a novela "Renascer", atualmente no ar, é melhor do que pelo menos uns 500 filmes que chegaram por aqui. Ela pelo menos tem o Walter Carvalho como um de seus diretores. Mas eu vejo uma saída. Essa saída está em espaços de resistência como os cineclubes, como os eventos que o Estação tem feito, dando voz a estéticas variadas.
O que o streaming hoje pode representar para a sua obra?
Fui boicotado por todos os lados quando 'A Dama do Lotação' estava nascendo e quando estreou, mas agora, 46 anos depois, ela chega à Netflix, que pode leva-la para o mundo todo. Sinto que o povo brasileiro precisa ter acesso a filmes que prestam. Aliás, acho bem importante que existam streamings variados para exibir de tudo.
Qual foi o momento mais emocionante das filmagens de 'A Dama do Lotação'?
"A Dama do Lotação" foi combatido pelas patrulhas ideológicas e sexuais mas sobreviveu. Passei sete anos idealizando o projeto, sonhando com o filme pronto. Nesse período, morando em Londres, eu ia em brechós e comprava roupão e calcinha para a personagem. Nelson Rodrigues confiou em mim, acreditando que eu ia conseguir os recursos para poder comprar os direitos e levantar o projeto, e deu certo. Cada dia da filmagem eu agradecia a Deus por aquela oportunidade. Revendo o que fizemos, eu vejo como é boa a atuação da Sonia Braga. Se a Meryl Streep tem três Oscars, a Sonia deveria ter 12.
O que ainda fascina na obra de Nelson?
O maior defeito dele foi ter escrito as maravilhas que ele escreveu em português, pois se tivesse escrito em inglês ou espanhol, ganharia o mundo. O segundo defeito era ter talento e genialidade, coisas que ninguém perdoa neste país. Nelson não tem cabresto. Tem uma genialidade sem limites. Estou numa movimentação para adaptar mais um texto dele. Quero filmar "Anti-Nelson Rodrigues".
O que justifica esse interesse?
Ali ele quebra seus paradigmas, arrisca um happy end, não fica preso às próprias convenções, comprovando o quanto era grande.
Neste sábado, o Cine Grande Otelo leva à Casa França Brasil seu "Jardim de Guerra", que serve de gênese à sua obra de longas. O que significa reencontrar suas origens?
Por culpa dos fariseus da cultura, filmei menos do que deveria. Saí de dois fenômenos de público ("A Dama do Lotação" e "Os Sete Gatinhos") e passei anos sem ganhar um edital. Os produtores me boicotavam, os exibidores me patrulhavam. A perseguição dos distribuidores foi grande. Mas estou aqui.
Está no cinema e nas artes plásticas e visuais, vide as videoartes na mostra da Cavídeo. Tem mais algum trabalho nessa área a caminho?
Tem. Se chama "Catedral", uma instalação inspirada em elementos sacros, feita com cordas, e que pode ser usada como tela para projetar filmes.