Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Victor Lopes: 'Sempre encaro filmes como pedra bruta, mirando a escultura final como rumo e destino'

Victor Lopes | Foto: Divulgação

 

Preparando seu regresso à ficção, cerca de uma década depois do hilário "As Aventuras de Agamenon, o Repórter" (2012), Victor Lopes surpreendeu o cinema brasileiro com a consagração de sua narrativa documental mais experimental... e super pop: "Fausto Fawcett na Cabeça".

O filme é o principal (e mais inventivo) lançamento nacional deste fim de semana. Em 2022, ele saiu do Fest Aruanda, na Paraíba, com o prêmio de Melhor Longa-metragem. Sua narrativa é um ensaio sobre dissonância lírica sobre (ou melhor, estrelado por) um poeta, dramaturgo, cantor e letrista identificado com o bas-fond carioca.

Fawcett ainda recebeu um prêmio raro lá em Aruanda: o de Melhor Ator/Personagem, o que não é comum a estruturas documentais. Mas o filme não é nada comum também, como nada que Victor enquadra em sua obra, num olhar de estrangeiro repatriado na brasilidade.

O cineasta nasceu n'África, em Maputo, Moçambique, com nacionalidade portuguesa, mas mora no Brasil há uns 47 anos. Entre documentários e ficções, já fez seis longas para a tela grande, além de dois telefilmes, três médias e dois curtas, numa travessia pelas poéticas do audiovisual que experimentou o aplauso internacional com a boa acolhida a seu "Língua - Vidas Em Português". No papo a seguir, Victor faz um balanço de seu trabalho com Fawcett.

De que maneira a poesia de Fausto marcou a sua geração e de que forma a obra dele se destaca como um relato do bas-fond carioca?

Victor Lopes: Fausto Fawcett é um artista atemporal e universal. Acho que, desde os anos 1980, isso ficou muito claro para quem viveu o seu trabalho, assim como ficou claro na percepção do público. Ele sempre transitou entre o mainstream pop e o submundo; a História Antiga e a moda da esquina; filosofia e gíria; civilização e barbárie. Uma das razões do filme é dimensionar o trabalho do Fausto na grandeza que merece, e a sessão histórica com show no Estação Net Botafogo foi uma prova viva do que ele representa para a sua geração e para muitas outras. Sua obra transcende Copacabana, o bas-fond carioca, o Rio 40 graus... No purgatório da Beleza e do Caos, Fausto Fawcett é um dos maiores poetas urbanos de todos os tempos, no Brasil e no mundo.

Como se deu o processo de lapidar um "personagem" nas raias da ficção a partir da figura do Fausto?

Sempre encaro filmes como pedra bruta, mirando a escultura final como rumo e destino, e "Fausto Fawcett na Cabeça" segue esse oráculo. No material bruto, como classificamos as imagens gravadas... verdadeiros tesouros de arquivos garimpados... já sabia que esse personagem-farol seria um banquete cinematográfico, mas ele superou as expectativas. Usar o dispositivo da colagem, que serve de altar inicial para seus trabalhos, disparou um transe no Fausto, que se irradia filme adentro. Ele está possuído numa forma que descola da entrevista, atravessa a performance e se revela escancarado num intimismo cósmico. É um fluxo de palavras e ideias com contundência, poesia e humor em overdoses de magia pura. Ao entrar na cabeça do Fausto, cheguei também no coração, onde a dimensão humana e mortal nos iguala e atravessa. Esse conjunto de forças aprofunda um personagem vertiginoso numa obra em que gêneros cinematográficos se transformam em mero detalhe.

Qual é o lugar da música no seu cinema tão diverso... e autoral?

A música sempre esteve presente em meu trabalho, mas geralmente de forma mais diegética nos longas-metragens. Nos primórdios da TV a cabo, de 1996 a 1998, codirigi com o Roberto Berliner (produtor e mentor de "Fausto Fawcett na Cabeça"), a série "Free Jazz", de 45 episódios filmados no Brasil, EUA e Europa, reunindo de Herbie Hancock a Massive Attack. Foi uma formação superior no assunto, guiado por Roberto que, naquele momento, inoculou o documentário para sempre na minha carreira. No meu cinema, a música desempenha um papel essencial, mas sempre a serviço da narrativa de cada filme. Já em "Fausto Fawcett na Cabeça", ela é um elemento central. Ancorada na voz do bardo, com as parcerias de Laufer e Fernanda Abreu, a música foi reproduzida ainda por Lulu Santos, Skank, Chico Science, mostrando que Fausto não se restringe ao Rio de Janeiro. Na força imersiva do desenho de som do filme, interagindo com as imagens, a música salta por todos os lados da sala, inoculando os sentidos dos espectadores. Por tudo isso, este filme é também o que chamo de um Ópera .Doc. É uma experiência sinestésica sonhada para a sala de cinema.

Quais são seus atuais projetos de longa?

No momento estou em fase de captação de recursos para "Grupo de Família", um misto de drama familiar e thriller social que retrata dias sombrios da nossa história recente. É um filme urbano que cutuca feridas e sonhos e me leva de volta para a ficção, da qual sinto falta em meu trabalho de muitas faces. Em paralelo, trabalho com o Fausto na adaptação de "Favelost" para o cinema. Estamos em fase embrionária que vai se acelerar após o lançamento do .doc, e novos mundos nos aguardam!