Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Bergman ao azeite

Ingmar Bergman com Liv Ullmann e Max von Sydow no set de 'A Hora do Lobo' | Foto: Berlinale

 

Templo de vozes autorais, o cine Medeia Nimas, em Lisboa, dedica sua tela, daqui até 2 de outubro a uma expedição aos recônditos da alma, tendo como meio de transporte a obra de Ingmar Bergman (1918-2007). É invejável a retrospectiva que o público português ganha de presente no segundo semestre com 31 títulos do mestre sueco.

Entre 1946, com o lançamento de "Crise", e 2003, quando o teledrama "Saraband" começou a circular por TVs e cineclubes, a indústria audiovisual deitou-se num divã para um trabalho de análise da moral, da fé e do amor apoiado numa troca simbólica com o diretor que pôs dilemas do espírito no centro da câmera. Numa queda de braço com nosso superego, na triagem das neuroses que levam à brutalidade e ao desamor, Bergman rodou 65 filmes, sem contar as práticas com teatro filmado que fez para a televisão escandinava. Entre os títulos que fazem parte da grade do Nimas, em cópias novas, estão reflexões autorais sobre a existência que se tornaram marcos da arte de filmar. "Morangos Silvestres" (1957) é um deles. Laureado com o Urso de Ouro do Festival de Berlim, o longa-metragem representa um momento de ascese de uma obra considerada por muitos a mais balanceada que arte cinematográfica já viu. Para muitas cabeças da crítica, Bergman foi o diretor dos diretores.

De sua filmografia consta um punhado de experiências narrativas com status de obra-prima, como é o caso de "Persona" (1966) e "O Sétimo Selo" (1957), que ilustram o modo Ingmar Bergman de enquadrar, de dirigir atores, de iluminar cenas e de esgarçar as fronteiras filosóficas da dramaturgia, baseado ora num preceito, ora numa sensação. O preceito dele: "Eu faço filmes com meus amigos mais queridos. Tenho 18 que cabem nessa categoria. Eles são a minha equipe, nada mais". O motor imóvel de sua arte: "Vivo numa ansiedade sem causas tangíveis e, para me aliviar dela, eu preciso filmar".

Os cem anos do realizador foram comemorados no dia 14 de julho de 2018. Vários países festejaram sua memória em suas cinematecas e museus, a começar pela Suécia. Shoppings de Gotemburgo, entre os quais o Nordstan, expuseram em seus corredores cartazes gigantescos com o rosto do cineasta convocando para os festejos de seu aniversário de número cem. As numerosas retrospectivas de cults que ele recebeu reúnem "Gritos e Sussurros" (1972) e "Sonata de Outono" (1978). Como julho é mês de seu aniversário, muitos países voltam a celebrar seu legado. No Brasil, a Amazon Prime exibe um par de documentários sobre ele.

Uma referência das maiores contribuições do Bergman ao imaginário cinéfilo foi a partida entre o paladino Max von Sydow e a Morte no já citado "O Sétimo Selo" para decidir os destinos da Humanidade diante da Peste. Até hoje ela é citada como um signo.

Ali, ganhava forma uma das principais inquietações de Bergman: a Finitude. Além dela, seus filmes se preocupam em discutir a presença de Deus, a agonia do existir, solidão, a fragilidade das convenções sociais e as incongruências da vida a dois. Deste último tema, ele extraiu um fenômeno midiático: "Cenas de um Casamento", minissérie de TV, também editada como filme, que fez aumentar o número de divórcios em território escandinavo na época de seu lançamento, em 1973. O cineasta ganhou um Globo de Ouro pela empreitada, uma das muitas honrarias douradas em seu currículo. Filho de um pastor protestante, nascido em Uppsala (a 70km a norte de Estocolmo), o diretor - que teve seu primeiro acesso a um projetor de imagens ainda menino, trocando uma dezena de soldadinhos de chumbo com seu irmão por aquela "lanterna mágica" - ganhou um Oscar honorário (o Irving G. Thalberg, dado em 1971), o Leão de Ouro Especial do Festival de Veneza, em 1971, e a Palma das Palmas do Festival de Cannes, em 1997.

Não foram os franceses (garimpeiros de autoralidades) que descobriram Ingmar: sua consagração aconteceu a partir do Festival de Punta del Este, no Uruguai, em 1952, de onde o filme "Juventude", partiu para conquistar plateias sul-americanas, despertando atenções de jornalistas europeus aqui residentes. Daquele evento em Punta, críticos brasileiros como Ely Azeredo (morto este ano) promoveram a potência estética de Bergman nas Américas, contribuindo, à força de resenhas apaixonadas, para o êxito nacional de Sorrisos de uma "Noite de Verão" (1955) e "Noites de Circo" (1953).

Numa de suas últimas entrevistas, antes de sair de cena, em 30 de julho de 2007, Bergman falava muito da decadência da matéria, mas com sabedoria. "Aprendi que posso dominar as forças negativas e usá-las a meu favor". Agora os lusitanos vão poder se deliciar com seu saber.