Nas páginas de "A Transparência do Mal", Jean Baurillard (1929-2007) profetizou que nada na cultura de massas desaparece pela escassez, mas, sim, pelo excesso. A profecia se concretizou com o filão que mais e melhor sustentou o cinema no século XXI: os filmes de super-herói. A proliferação desenfreada desse subgênero da aventura, apoiada pelo apetite dos estúdios por milhões, esgotou minas outrora auríferas numa explosão de tramas pasteurizadas, empapadas de algoritmos e de códigos lacradores.
Foi a partir de "Thor: Amor e Trovão" (2022), de Taika Waititi, que a Marvel Studios, a usina mais potente desse latifúndio, começou a sentir (no bolso) o peso de sua desmesura. Ofertou tanto, sem critério, que cansou. "Quantumania" (2023), a terceira parte das peripécias da Vespa e do Homem-Formiga, desandou de vez a fervura e entornou o caldo da lucratividade, enfastiando o público.
As únicas formas de reatar laços com o público hoje parecem ser ou o investimento em releituras realistas com perfil de "filme de arte", como fez a DC com "Coringa" (Leão de Ouro do Festival de Veneza de 2019), ou a aposta numa linha cômica de humor feroz. Essa foi a rota aberta por "Deadpool", em 2016.
Esse foi o caminho que a Marvel escolhe agora, ao trazer de volta o Mercenário Tagarela num duo com o mais famoso dos X-Men: Logan, o Wolverine. O que se vê da divertidíssima junção dos dois é um escárnio metalinguístico sem precedentes para os padrões desse veio de filme, sem descaso algum com a adrenalina nem com a forma de se coreografar sequências de luta, perseguição, tiroteio. É picardia pura, com uma inteligência que parecia ter sido perdida.
Shawn Levy, produtor responsável pela série cult "Stranger Things", conhecido como diretor por seu trabalho na trilogia "Uma Noite No Museu" (2006-2014), é um cineasta sem marca formal própria reconhecível. Eficácia técnica, contudo, sempre foi o seu forte, vide "Gigantes de Aço" (2011) e "Free Guy: Assumindo o Controle" (2021), filmes nos quais dirigiu Hugh Jackman e Ryan Reynolds. Os dois, sob a mira precisa de Levy, ajudam "Deapool & Wolverine" a se impor na telona como uma montanha-russa de emoções. É piada, é palavrão (colocado na hora certa), é malabarismo, é autocrítica. Os dois, em química pura e aplicada, fazem de tudo. Conseguem até o feito de dar gás a um outro filão que vive em coma em Hollywood faz tempo: a comédia.
Num diálogo surpreendente com as histórias em quadrinhos, revirando referências a tesouros das HQs dos anos 1990, como "A Era de Apocalipse" e a "A Saga do Caolho", "Deadpool & Wolverine" é o longa-metragem mais irreverente (e engraçado) de 2024 até agora, capaz de abrir reentrâncias do riso que andavam soterradas sob o peso da correção política.
Desde 2012, quando "Ted" de Seth MacFarlane escancarou os limites do bom comportamento das cartilhas hollywoodiana, faturando US$ 549 milhões, uma comediona americana não faz os cofres dos exibidores inchar de dinheiro. Ano após ano, a partir de então, o gênero ficou cada vez mais tímido, migrando para os streamings em fórmulas de crônicas de costumes em que a gargalhada dá lugar ao esgar ligeiro.
O que se no filme de Levy, entretanto, é a boa gargalhada, escudada pela autoparódia e por uma contínua "quebra da quarta parede" (gesto de se dirigir diretamente à plateia) na qual Deadpool faz troça do sucateamento dos estúdios Fox e de sua compra pela Disney.
Na trama, o personagem de Ryan Reynolds (muito bem dublado no Brasil por Reginaldo Primo) deu um tempo em seu uniforme e nas espadas e arrisca uma vida corriqueira, de peruca, como vendedor de carros. Vive na pasmaceira até um excêntrico analista das linhas temporais do cosmo chamado Sr. Paradox (Matthew Macfadyen, o Mr. Darcy de "Orgulho e Preconceito"), notar uma falha no fluxo temporal do anti-herói por conta do sumiço de Wolverine (Jackman, aqui dublado pelo mestre da voz Luiz Feier Motta), morto num gesto de (autos)sacrifício visto em "Logan" (2017).
Deadpool é ludibriado por Paradox para encontrar um substituto à altura do mutante das garras de Adamantium (um metal fictício dos quadrinhos), numa realidade paralela do multiverso, mergulhando numa espécie de lixão cronológico para onde foram refugos de dimensões condenadas (leia-se projetos da Fox cancelados ou interrompidos). O lugar sofre sob a égide da vilã Cassandra Nova (Emma Corrin, em ótima atuação), irmã gêmea má do Professor Xavier, condenada ao esquecimento.
A tarefa de Deadpool é ajustar os registros das ondas cósmicas liberados por existências relegadas à desaparição, impedindo que sua linha do tempo seja apagada. Essa premissa com tintas de física é narrada por Levy (coautor do roteiro com Reynolds, Rhett Reese, Paul Wernick e Zeb Wells) num tom abilolado de chanchada capaz de agradar nerdolas e olhares leigos, salvando a comédia do engessamento e resguardando os filmes de super-herói da falta de risco. A aparição de Wesley Snipes revivendo um de seus trabalhos mais icônicos, o Blade, é um trunfo especial do longa.