CRÍTICA FILME - AINDA TEMOS O AMANHÃ: Em dívida com a questão feminina
"Ainda Temos o Amanhã", de Paola Cortellesi, trata da primeira eleição em que as mulheres tiveram direito a voto na Itália. Isso aconteceu em 1946, no imediato pós-guerra, e é uma pena que os filmes neorrealistas não tenham abordado o tema, talvez por terem sido feitos por homens, talvez machistas como o marido de Delia, vivida pela própria Cortellesi.
Não tão machistas, espera-se. A existência de Delia é árdua, e não apenas pela pobreza. Ela também apanha quase diariamente de Ivano, o marido. Ele bebe e fica violento. Quando não bebe, também não é lá essas coisas, mas é o momento em que, por vezes, pede perdão pelo comportamento animalesco e jura amor eterno, essas coisas.
O "maitre à penser", vamos dizer assim, de Ivano é seu inacreditável pai, Ottavio. Além de apalpar a nora sempre que pode, dá conselhos ao filho. O mais relevante deles diz respeito ao trato com as mulheres. Ele diz que não deve bater com frequência na mulher, porque ela "pode se acostumar". Bata, sim, mas uma surra exemplar, que ela não esquecerá.
Nesse ambiente bestial vive Delia, mas também a filha, Marcella, e dois filhos menores. Marcella namora e talvez logo fique noiva de Giulio, gentil filho de uma família enriquecida durante o fascismo por meios bem pouco lícitos. Giulio é gentil, sim, mas flashbacks nos mostram que Ivano também era uma beleza na época do casamento.
Como se vê, Delia não tem nada de animador a esperar da vida. E nem nós do enredo. A direção de Cortellesi, setor em que estreia, também não é de grande ajuda. Há cenas bem escritas, como a do encontro das famílias dos dois namorados, com todas as suas contradições.
A família de Giulio também é metida a besta. A mãe do rapaz acha a comida preparada por Giulia uma absoluta pobreza. Teme-se que Ivano tome um porre, ou que seu pai apareça com grosserias, ou que os meninos falem palavrões.
É pena que Cortelesi picote as cenas para introduzir reações dos participantes em primeiro plano, com ênfases tão pronunciadas (e mal interpretadas) que até parece estarmos diante de uma representação teatral ginasiana.
E, apesar disso, há questões inquietantes que atravessam o filme. Não em 1946, mas hoje, o número de assassinatos e estupros de mulheres é mais que medonho, insuportável. O mesmo fato que justifica a existência deste filme - a discussão da situação feminina na sociedade - força a observar também os problemas que o filme carrega, não os de que trata.
Pode-se aceitar, por exemplo, que as personagens sejam apenas tipos. Isso engendra uma perigosa fileira de clichês, que devem traduzir, em todo caso, o comportamento de pessoas como Ivano.
Ao mesmo tempo, não é tão fácil engolir uma encenação em que a qualquer ação corresponde uma reação espantada dos presentes. E isso acontece todo o tempo. Do mesmo modo, o preto e branco da fotografia lembra não o do neorrealismo, mas daquele que existia no começo do digital.
Também é difícil engolir um roteiro que se dispõe a iludir o espectador com insinuações de romance extraconjugal para saltar à questão central do filme, que, aliás, nem tinha sido proposta até ali.
E por aí vamos, num filme que busca se afirmar como didático, isto é, que está ensinando algo a outras pessoas, seja às mulheres, vítimas de violência, seja aos homens, os violentos. Mas é inevitável perguntar a quem, afinal, dirige-se "Ainda Temos o Amanhã". Às mulheres, sem dúvida. Mesmo àquelas na meia-idade, não desistam de viver, apesar de tudo.
Embora esses propósitos sejam bem contemporâneos, seus méritos dizem respeito muito mais ao lugar da mulher na sociedade e na família do que ao cinema propriamente dito. E é espantoso que, apesar de suas muitas fragilidades, "Ainda Temos o Amanhã" tenha dado a Cortellesi o prêmio mais relevante da indústria italiana, uma espécie de Oscar de lá, na categoria de melhor direção, em 2023.
Sabe-se que a ideologia tem tomado um espaço grande (para mim, excessivo) na arte contemporânea, a ponto de em várias situações praticamente substituir a arte. Mas uma aceitação assim é mais um sinal claro de que o pensamento cinematográfico de um país tão relevante como a Itália está, pelo menos, periclitando.
E que o "problema contemporâneo" vede qualquer juízo sobre o trabalho cinematográfico realizado. Não estamos em qualquer lugar nem em qualquer circunstância: a lembrar que a também italiana Alice Rohrwacher se destacou em Cannes, no ano passado, com o belíssimo "La Chimera".
Entre esses dois extremos, o cinema italiano ainda busca se reconhecer, nesse momento em que renasce.