A nova sessão de Peter Bogdanovich
Retrospectiva na Caixa Cultural resgata o legado do realizador de cults como 'Lua de Papel'
Pouco antes de sua morte, em 6 de janeiro de 2022, Peter Bogdanovich conversou com o Correio da Manhã sobre um filme que então preparava, mas fora prejudicado pelos confinamentos impostos pela covid-19: "One Lucky Moon", uma comédia ambientada em parque temático do Velho Oeste. Trabalhava, àquela ocasião, em dois livros. Um se chamava "Five American Icons", centrado na mitologia cinéfila em torno de Lauren Bacall, Kirk Douglas, Arthur Miller, Clint Eastwood e Jack Nicholson. O outro título se chama "But What I Really Wanna Do Is Direct", uma espécie de diário com citações e anotações de sua carreira.
Uma das carreiras de maior prestígio da chamada Nova Hollywood (também batizada de Geração Easy Rider), a turma de diretoras /es que mudou a maneira de se filmar nos EUA, entre 1967 e 1981. Gênios como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Elaine May, George Lucas e Steven Spielberg apareceram ali, com a uma posposta de engajamento social, fazendo uma cartografia das desilusões inerentes ao sonho americano. Cada um à sua maneira rompeu com os ditames dos estúdios, num casamento feliz (e raro) entre autoralidade e sucesso de bilheteria em série.
Bogdanovich encheu os cofres dos exibidores com "Essa Pequena É Uma Parada" (1972) e "Lua de Papel" (1973), longa-metragem de abertura de uma mostra em deferência a esse singular realizador que a Caixa Cultural inaugura na terça-feira. O professor Pedro Henrique Ferreira assina a curadoria do evento, que resgata a personalidade combativa de um diretor que nunca largou a escrita de lado, sempre atento a artistas seminais para a formação do audiovisual.
"Eu comecei a filmar num momento em que o cinema acreditava ser capaz de transformar um mundo que estava mudando tragicamente diante de nós", disse Bogdanovich ao Correio em 2018, quando lançou o documentário "The Great Buster" no Festival de Veneza.
Naquele mesmo evento, ele se empenhou ao lado da Netflix para ajudar no lançamento de "O Outro Lado Do Evento", colossal filme de Orson Welles (1915-1985) que passou décadas inacabado e inédito. Bogdanovich é ator nessa produção e fez um livro lendário com Welles, sobre a vida e a obra do diretor de "Cidadão Kane" (1941).
"É engraçado ver que eu estou bem em cena, pois Orson foi um grande diretor de atores. Surpresa foi conferir o desempenho de John Huston (um os maiores cineastas dos EUA, famoso por clássicos como "Relíquia macabra" e "O Tesouro de Sierra Madre") como protagonista. Welles teve brigas com os produtores dos anos 1970. Só montou 40% do filme. O assustador é que, um dia, durante um almoço em meio às filmagens, ele me fez prometer que eu terminaria o filme por ele, caso ele morresse", disse Bogdanovich, que estreou nos longas com "Na Mira da Morte" (1968) dirigindo o eterno monstro de Frankesntein: Boris Karloff (1887-1969).
"Eu havia feito pelo menos umas 30 peças como ator quando comecei a rodar esse filme, e já havia dirigido uns sete espetáculos de teatro. Tinha ainda trabalhado como diretor assistente de Roger Corman em 'Os Anjos Selvagens', de 1966. Alguma experiência eu tinha. Foram cinco dias de trabalho com Boris, só. Ele já estava bem velhinho à época, mas foi muito colaborativo. Eu tive 23 dias para rodar o filme, com tempo nenhum a perder. Filmamos em 1967 e lançamos só em 68, porque a montagem atrasou e eu custei a vende-lo para um distribuidor. Mas estreamos logo após terem matado Bob Kennedy. Imagina o que foi, naqueles dias, lançar um filme sobre um atirador de elite psicopata no momento em que assassinam a tiros um dos senadores de maior popularidade dos EUA", falou o cineasta, em entrevista de 2021.
Na programação da Caixa Cultural, "Na Mira da Morte" passa no dia 27, às 15h40. No dia anterior, sexta, dia 26, às 17h30, a retrospectiva exibe o trabalho mais aclamado de Bogdanovich, "A Última Sessão de Cinema" (1971), um drama em P&B sobre a perda da inocência da juventude do Texas, em 1951, tendo uma velha sala de projeção como ponto de encontro - que mais lhe deu projeção na indústria. Dois Oscars de melhor coadjuvante, dados a Cloris Leachman e Ben Johnson (numa atuação antológica), imortalizaram o longa.
"Minha vida mudou ali, com aquele filme, pois ele fez de mim alguém que a indústria queria escutar. Até aquele momento, o cinema americano existia para fabricar astros e estrelas. Era uma usina que fabricava figuras como James Cagney, Humprey Bogart. A minha geração chegou disposta a fabricar algo além. Queríamos fabricar filmes, filmes pessoais. Queríamos que as pessoas saíssem de casa para ouvir as nossas histórias. Para isso, demos às plateias realismo, atenuando o escapismo pleno da era clássica. Uma era que não pode ser nunca esquecida. Nunca penso no cinema dos anos 1970, nos EUA, como sendo um movimento ou uma revolução.
Foi apenas uma troca de turno, uma passagem de bastão", disse Bogdanovich, que entrevistou os maiores baluartes da arte cinematográfica no livro "Afinal, Quem Faz Os Filmes", lançado aqui pela Cia das Letras. "É necessário que se conheça Howard Hawks, John Ford e outros grandes diretores cuja obra exige a força da tela grande. Os streamings hoje têm muita coisa boa em suas grades. Mas eles não substituem o ritual de se mobilizar até uma sala de exibição e se deixar comover".
Na quarta, a Caixa exibe duas pérolas de Bogdanovich: às 15h40, rola "Um Amor A Cada Esquina" (2014); e, às 17h40, acontece a exibição de "Impróprio para Menores" (1992).