Sinfonia de um cinema nada comum
Ponto Cine exibe documentário sobre o diplomata José Maurício Bustani em sessão em homenagem à obra de José Joffily, diretor autoral que brilha na ficção e na estética do real
Ao passar pelo Ponto Cine, em Guadalupe, neste sábado, para a exibição seguida de debate de "Sinfonia De Um Homem Comum", José Joffily estará levando ao subúrbio carioca uma dose de nitroglicerina política em forma de um relato sobre relações internacionais. Junto dela, leva também saudades, sonhos e sucessos de quase cinco décadas de dedicação ao audiovisual.
Ao levar às telas o thriller "A Maldição do Sanpaku", em 1992, ele foi uma das poucas vozes resistentes, em meio à extinção da Embrafilme, a conseguir filmar e lançar longas num período nefasto para nossa indústria audiovisual. Esse período foi de 1990 (o desmanche da empresa, com a chegada de Collor ao Poder) e 1995, ano do início da Retomada. Foi ali que ele soube se reinventar, tanto nas ficções - com "2 Perdidos Numa Noite Suja", sua obra-prima, lançada há 20 anos - quanto nos documentários, com "Chamado de Deus".
Eram (e são) sempre títulos calçados num taquicárdico modo de falar de escolhas e renúncias. Sua fala de amanhã, a partir das 10h, é uma revisão desses episódios de resiliência em sua carreira. "É sempre estimulante encontrar o público depois do espetáculo, seja ele um filme, uma peça de teatro ou um show de música", diz Joffily, que foi professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Nas duas últimas manifestações, o artista está ali, de corpo presente. Nelas, é possível você sentir a pulsação dos espectadores. Nos filmes, o que existe é a luz na tela, os realizadores estão ausentes. Então, esse corpo a corpo é sempre revigorante. Ainda mais com uma plateia tão quente quanto a do Ponto Cine, uma plateia curiosa numa sala acolhedora. Dalí, você sai enriquecido, pleno. Depois de concluído um trabalho, ele ainda reverbera forte no seu coração durante pelo menos uns dois anos. Com o retorno do público, o filme vai ganhando novos significados. Algumas vezes, significados que estavam submersos vêm à tona no debate. Assim, você ganha forças e certezas para o próximo. É uma espécie de transfusão de energias, uma mão dupla de sentimentos".
Tensão sempre foi um elemento presente no cinema de Joffily, um paraibano de João Pessoa, adotado pelo RJ, transformado num carioca de alma graças as areias de Copacabana, onde rodou cults como "Achados e Perdidos" (2005). Seu "Sinfonia De Um Homem Comum" pode ser definido como um documentário regado de suspense. Trata-se de um explosivo relato dos feitos (e acertos) do diplomata José Mauricio Bustani, que foi o primeiro diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), entre 1997 e 2002. Na época, ele tentou impedir a invasão ao Iraque pelos Estados Unidos, durante o governo de George W. Bush, e acabou demitido por pressão dos americanos. O doc chega às telas após desfrutar de uma aclamada recepção no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, o IDFA. No 27º É Tudo Verdade, ele ganhou menção honrosa por sua dramaturgia. Brilhou ainda no HotDocs, no Canadá.
"Na nossa 'Sinfonia', a biografia do Bustani é importante, mas, acima de tudo, entendemos que são os países hegemônicos que mandam no planeta, fazem as guerras e as regras. As organizações multilaterais, mantidas majoritariamente por esses mesmos países, servem para referendar suas posições. Posições essas, que quando contrariadas, são desrespeitadas solenemente", explica o cineasta.
Durante o processo de filmagens de "Sinfonia...", o que ficou transparente para o cineasta é o interesse econômico regendo as decisões. "Guerras existem a partir do interesse da indústria bélica aliada ao desejo da dominação geopolítica. No decorrer das entrevistas e de nossa viagem ao congresso, na comissão de Haia, também ficou evidente que a história da destruição do Iraque, guiada pelo interesse no petróleo, não foi um evento isolado nem faz parte do passado", diz Joffily.
Mais do que um reencontro com as pelejas de Bustani, a sessão do Ponto Cine serve para Joffily como um termômetro de suas descobertas na arte. "Antonioni, que dirigiu entre outros filmes, 'Profissão Repórter' e 'Blow up', dois dos filmes que vejo e revejo com admiração, escreveu, aos 75 anos, um pequeno livro chamado 'Começo a Entender'. Esse craque, que fez pelo menos essas duas obras primas, revela que depois dos setenta estava apenas começando a entender o que são os filmes. Assim, sempre que acho que sei alguma coisa, penso nesse livreto e nessa confissão, e vejo que continuamos a aprender ao longo de toda a vida", diz Joffily. "Entendo também que o fato de estar sempre aprendendo não significa deixar de errar. Só erra quem faz", arremata.
Ao avaliar o futuro, Joffily garante que são muitos os projetos: "a gaveta está cheia". A fim de dar conta de planos de documentários, ficções e séries, ele conta com a produtora Isabel Joffily e o cineasta Pedro Rossi. "Com eles, a média da faixa etária diminui e os talentos se somam. Decorridos alguns anos e alguns filmes, vi que determinados temas são recorrentes. Os projetos futuros não fogem dessas temáticas já visitadas, mas vejo com preocupação o futuro do audiovisual. Claro que o panorama melhorou muito depois dos anos de destruição promovidos recentemente, mas ainda vivemos de editais sem programação alguma. Por outro lado, o fato mais relevante hoje no audiovisual é a regulação das plataformas, dos streamings", diz Joffily. "Em número de assinantes, o Brasil ocupa o segundo lugar e funciona sem regulação alguma. Na Europa, nos Estado Unidos e em outras dezenas de países, as plataformas pagam impostos, contribuições ao audiovisual e são obrigadas a promover uma reserva de mercado. Portanto aqui é o paraíso para eles, e, por isso, estão lutando com todas as forças e armas no Congresso para barrar qualquer tentativa de regular o mercado. Um lobby poderoso com a Motion Pictures of America à frente. Enquanto isso, a aberração continua, nós, realizadores, pagamos todos os impostos e a Condecine (a contribuição para o audiovisual) e as plataformas passam incólumes sem qualquer ônus na comercialização dos títulos".