Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Shyamalan bate à porta

Batem à Porta se tornou um dos filmes mais polêmicos do realizador indiano Shyamalan | Foto: Divulgação

 

Precedido por uma campanha midiática que marcou a passagem de seu realizador, o indiano radicado na Filadélfia M. Night Shyamalan, por São Paulo, "Armadilha" ("Trap") chega este fim de semana ao circuito exibidor promovendo uma corrida aos filmes que fizeram a fama (e deram polêmica) ao cineasta. Seu longa-metragem mais recente acompanha a caça a um serial killer (Josh Hartnett), habitualmente disfarçado sob uma vidinha banal, que levou a filha a um show e é perseguido por todos os lados.

A expectativa por essa produção gera uma busca por seus trabalhos recentes, em especial o controverso "Batem à Porta" ("Knock at the Cabin"), de 2023. Sua bilheteria global beirou US$ 54 milhões. Hoje é possível alugar ou comprar o filme pela Amazon Prime. Novos holofotes fazem da fita um cult, cerca de um ano e meio depois de sua estreia comercial.

Gramaticalmente, "Batem à Porta" periga ser o exemplo mais bem-sucedido do uso contínuo de closes, super closes e planos de detalhe da História, no cinema pop. Calca-se em metonímias, do começo ao fim, de modo a conseguir expressar o horror da intolerância e de seu gêmeo perverso, o fanatismo. É um Shyamalan em estado de graça. O diretor vem se superando a cada filme, embora dê umas derrapadas (sobretudo em escalação de elenco) em "Tempo" ("Old"), de 2021, que fez enorme sucesso de audiência em sua recente passagem pela TV aberta, na grade da "Tela Quente" da Globo.

O que ele faz em "Batem à Porta" é algo da ordem do sublime, no que se remete à estrutura formal de um longa de suspense, que se propõe a ser intimista. Há a taquicardia de sempre, em seu cinema, que alcançou status de autor prestigiado em 2004, após o lançamento do seminal "A Vila". Porém, existe nele uma perspicácia poética na maneira de tratar da intolerância - assunto sempre caro ao diretor nascido em Pondicherry, na Índia, há 54 anos - e de retratar o quanto famílias podem ser signos transcendentais para a ignorância nas relações afetivas. Sua narrativa não gasta tempo com firulas e já começa febril.

Na sequência inicial, uma de suas personagens centrais, a encantadora menininha Wen (Kristen Cui), é abordada por um monstro tipo o de Frankenstein, cuja psiquê é moldada por retalhos de fake news e crenças ardorosas no improvável: o professor e bartender Leonard (Dave Bautista, numa atuação devastadora). É chocante ver o Drax de "Guardiões da Galáxia" naquele personagem - um ser taciturno, de uma sabedoria catastrofista, digna de pregador religioso - que inunda o retângulo da telona com seu corpanzil.

A fotografia saturada - estruturada a quatro mãos por Jarin Blaschke e Lowell A. Meyer - torna a monstruosidade demasiadamente humana de Leonard ainda mais assombrosa. Vale o mesmo para seus acólitos: a enfermeira Sabrina (Nikki Amuka-Bird, numa atuação meticulosa), a chef de cozinha Ardiane (Abby Quinn) e o ex-presidiário Redmond (Rupert Grint). São eles os mensageiros da extinção, mobilizados por uma série de catástrofes naturais que assolam os noticiários - temor já abordado pelo cineasta em "Fim dos Tempos" (2008), hoje também alvo de culto. A entrada deles no universo de Wen evoca a lembrança cinéfila de clássicos do medo como "A Quadrilha de Sádicos" ("The Hills Have Eyes"), de Wes Craven, lançado em 1977. Aliás, o clima do cinemão dos anos 1970 se faz notar desde o logo da Universal Pictures, que não é o atual, e, sim, aquele usado em "Tubarão" ("Jaws"), em 1975.

No desenrolar de "Batem à Porta", Leonard puxa papo com a serelepe Wen quando a menina está curtindo a vida animal na mata ao redor de uma cabana remota, onde passa férias com seus pais, Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge) - dois personagens com solidez de rocha, apoiados em atuações em estado de graça. Leonard e seus seguidores capturam a garota e seus guardiões legais, que levantam a todo o momento a hipótese de aquela invasão ser um ato homofóbico. Mas Leonard não enxerga assim. Ele recusa preconceitos, embora seu olhar tremule diante da percepção de que Wen é criada por um casal gay.

O que esse monstro desejo é que um de seus três reféns escolha um de seus pares para matar. Esse assassinato não seria um crime, e, sim, um gesto sacrificial em imolação da Humanidade, a fim de cessar as hecatombes bíblicas anunciadas pelos telejornais. Ou seja, Leonard anseia por um Cordeiro de Deus, que tire os pecados do mundo. A atmosfera de ameaça gerada pelo personagem eleva a adrenalina em nossas veias, com Shyamalan esbanjando seus dotes hitchcockianos de usar a sugestão em vez de apelar para expressões gráficas sanguinolentas. Em um bate-papo de que participou na TV Globo, em 2015, Shyamalan explicou bem o que espera da arte: "O inusitado". Na época, ele veio lançar o seriado "The Wayward Pines", hoje em cartaz na plataforma Star , e deu uma palestra nos Estúdios Globo sobre a arte de dirigir enredos pautados pelo medo e pela fantasia. Essa pauta fez dele um campeão de bilheterias e lhe deu fama, consagrada com sua escolha para presidir o júri da Berlinale (o Festival de Berlim) em 2022. Fama que ele conquistou com "O Sexto Sentido" (1999) mas chegou a perder, por um longo e doloroso período, passando uma década distante dos aplausos, entre 2006 e 2014, até conseguir se reinventar. Reinvenção é uma arte na qual ele é um mestre. Depois de ter caído em desgraça com o injustiçado "A Dama na Água" (2006), ele amargou cerca de dez anos da mais peçonhenta rejeição até se recriar com "A Visita" (2015), um exercício autoral da carpintaria do susto, com o qual ele redescobriu as manhas do terror. Manhas que ficam mais sólidas com "Batem à Porta".