Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Na inquietude de Godard

Jean-Luc Godard e sua câmera nas ruas de Paris nos anos 1960 | Foto: Reprodução

Dois anos depois de sua morte, por suicídio assistido, o mito da semiologia Jean-Luc Godard (1930-2022) segue no radar do audiovisual. Festivais de narrativa documental do Velho Mundo e as salas de exibição ditas "arthouse" da França hoje se esforçam para encontrar um espaço para o curta "Scénarios", cujo roteiro foi deixado semifinalizado pelo cineasta, antes de sua partida. Exibido em Cannes, o filme é um tratado sobre a gênese e a decadência da sociedade ocidental, construído a partir de imagens de arquivo, documentos e referências à espirial do DNA.

Enquanto essa pequena, mas poética produção busca espaço em tela, streamings de todo o mundo abrem brecha para sua forma autoralíssma de narrar. Em terras ibéricas, a plataforma FilmIn hoje exibe "Tudo Vai Bem", rodado por ele em 1972, e o estonteante "Carmen de Godard" (Leão de Ouro de Veneza em 1983). No Brasil, essa tarefa de explorar a filmografia de JLG ficou a cargo da MUBI, que acaba de inaugurar em sua grade um menu especial chamado "Para Sempre Godard".

Essa seleção imperdível do www.mubi.com reúne o período áureo da formação godardiana numa homenagem à Nouvelle Vague, o movimento de renovação audiovisual do qual ele foi um pilar. Estão por lá uma série se clássicos como "Acossado" (1960), "Piierrot Le Fou - O Demônio das Onze Horas" (1965) e "Alphaville" (também de 65, quando ganhou o Urso de Ouro da Berlinale). Neles, Godard capta não apenas o dinamismo de locações ora metropolitanas, ora rurais, como também o espírito vivaz de uma nova geração que, naquele momento desafiaria o status quo na França. Esta coleção celebra o estilo eclético do realizador suíço (embora nascido em Paris), bem como capta a atitude combativa e radical dos anos 1960, que caracterizam seus longas iniciais. Continua na página seguinte

 

Filme derradeiro é um tratado filosófico de 18 minutos

Acompanha o projeto um vídeo de 34 minutos no qual o próprio Godard apela para uma mixagem de arquivos a fim de deixar instruções acerca do modo como "Scénarios" deveria ser terminado e exibido | Foto: Divulgação

Há uma série de livros de ensaio sobre o legado de Jean-Luc Godard saindo em terras parisienses e helvéticas, com foco especial na provocação causada por "Scénarios". Sua narrativa semiótica é a prova de que esse inquieto diretor ambicionava fazer de sua morte um espetáculo - e um ponto continuativo - ao optar por serenar, aos 92 anos. À época em que morreu, ele confessou estar cansado do excesso de informações do mundo, mas o cansaço não impediu que ele deixasse heranças para a cineflia mundial.

Repleto de ironia em seu script, "Scénarios" é uma experimentação filosófica de 18 minutos, concluída na véspera de ele morrer, há dois anos. Acompanha o projeto um vídeo de 34 minutos no qual o próprio Godard apela para uma mixagem de arquivos a fim de deixar instruções acerca do modo como "Scénarios" deveria ser terminado e exibido.

"Palavras não são um sinônimo de linguagem, pois linguagem é algo além, é um conjunto de procedimentos de como empregamos signos. O problema é que as pessoas articulam esses signos sem a coragem de fantasiar o que aconteceria se as convenções fossem usadas de outra maneira", disse Godard ao Festival de Cannes de 2018, pouco antes de receber uma Palma de Ouro Honorária por "Imagem e Palavra", seu derradeiro longa.

Herança cultural

Essas palavras ditas por ele à Croisette não se enquadraram num processo convencional de entrevista, ao vivo. Ele falou com Cannes de seu escritório, na Suíça, usando Facetime, num papo em que elogiou a herança cultural de entrevistados da Rússia, de Portugal e do Brasil e lamentou o fato de todos falarem em Inglês. "Quem nasce na Itália é italiano. Quem nasce na China é chinês. Quem nasce na França é francês. Mas quem nasce nos Estados Unidos leva o gentílico de americano. A onipotência deles é tanta que eles não levam o nome do país e, sim, do continente", disse o cineasta numa coletiva de imprensa nos anos 1990.

No império do efêmero que o mundo midiático virou sob o garrote das fake news, o cineasta franco-suíço responsável por injetar poesia na semiologia, saiu de cena fazendo de sua partida um espetáculo transgressor, desafiando o Tempo, deixando como legado 118 filmes (entre curtas e longas) e mais 12 produções para a TV (entre séries e especiais). Segundo familiares e amigos próximos, entre eles, a mulher do diretor, a cineasta e produtora suíça Anne-Marie Mieville, sua morte foi uma opção diante do desgaste que sentia. Levando-se em conta que há ainda anotações dele prontinhas para que Anne-Marie e seus parceiros, Aragno e Battagia, deem partida a novos filmes. Tudo indica que vem mais coisa de Godard por aí.