Com filme inédito para estrear no Festival de Veneza, que começa nesta quarta-feira, Kiyoshi Kurosawa vive um 2024 agitado, com múltiplos títulos para lançar e o aceno do sucesso nas salas de exibição de seu país, o Japão, e da Europa, onde é tratado como popstar da estética autoral. Egresso de uma pátria que produziu titãs como Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, Hayao Miyazaki e Akira Kurosawa, de quem é xará de sobrenome, embora sem qualquer parentesco,
o realizador de 69 anos é um artesão do terror e do suspense, filão que impera em sua obra na penca de títulos que tem para lançar daqui até dezembro. Em fevereiro, ele eletrizou os nervos da Berlinale com um média-metragem de 45 minutos, "Chime", no qual um professor sente calafrios ao ouvir um ruído misterioso. Em terras venezianas, ele exibirá, fora de concurso, o thriller "Cloud", ligado aos bastidores do comércio digital na internet. Suas recordações do evento italiano são das melhores, uma vez que, em 2020, ele saiu de lá com prêmio de Melhor Direção por "A Mulher de um Espião". Em setembro, o diretor parte para o norte da Espanha, para a competição oficial do Festival de San Sebastián, para concorrer à Concha de Ouro com "Le Chemin Du Serpent". Haja fôlego!
"Num ambiente de suposta tranquilidade, onde o silêncio é melodia, qualquer ruído pode tirar a plateia da sua zona de conforto e convidá-la ao assombro. É assim que a tradição do terror se fez no Japão: transgredindo a normalidade que as aparências constroem. Quanto mais o seu universo de ação for cotidiano e corriqueiro, com gente supostamente comum, sem ninguém extraordinário, mais você pavimenta o caminho para a surpresa", disse Kiyoshi ao CORREIO DA MANHÃ em Berlim.
Sua circulação pelo cinema de gênero muitas vezes se pauta pela estranheza, se vê em cults como "Pulse" (2001) e "Creepy" (2016). Vez ou outra, ele navega pela seara do melodrama, deixando a brutalidade de lado, como é o caso de "Sonata de Cannes" (Prêmio do Júri na mostra Un Certain Regard de Cannes, em 2008), hoje em cartaz na plataforma MUBI. O pavor e o assombro, contudo, seguem sendo sua principal forma de expressão.
"Um certo sentimento de perda reside em todas as minhas narrativas, pois tenho interesse em entender que inquietudes eu encontro diante do que existe de mais uniforme e de mais recorrente na sociedade japonesa, a de ontem e a de hoje", disse Kiyoshi ao Correio quando iniciou as filmagens de "Cloud". "Existe aqui uma constante fricção entre a inércia e a transformação, mas nem sempre a inércia se conecta com a tradição".
Com a promessa de ser um dos hits de Veneza (onde o Brasil concorre ao Leão de Ouro com "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles), "Cloud" acompanha os perigos vividos por Yoshi Ryosuke (interpretado por Suda Masaki), que trabalha numa fábrica e ganha dinheiro à parte como revendedor, sob o pseudónimo "Ratel". Ele negocia material cirúrgico, malas de mão, estatuetas... tudo o que possa vender para obter lucro. Compra barato, vende caro. Deixando o seu emprego, muda-se com a namorada, Akiko (interpretada por Furukawa Kotone) para uma casa à beira do lago, fora da cidade, e começa uma nova vida. Com a ajuda de Sano (papel de Okudaira Daiken), um jovem local contratado como ajudante, os esquemas de revenda de Yoshii vão de vento em popa até começarem a ocorrer incidentes inquietantes à sua volta: veículos suspeitos passam a rondar a sua vizinhança, uma janela é partida do nada, sombras se fazem notar a seu redor... Uma espiral de animosidade ganha ritmo, ameaçando Yoshii.
Já lançado em circuito nipônico, com forte acolhida das plateias de Tóquio, "Le Chemin Du Serpent" começa nos subúrbios de Paris, onde Albert, um repórter freelancer (vivido por Damien Bonnard), jura se vingar do brutal assassinato da sua jovem filha, enquanto Sayoko, uma médica japonesa (interpretada por Ko Shibasaki), ajuda na sua busca de vingança. Com a orientação hábil de Sayoko, os dois se aproximam da verdade por detrás da morte da filha de Albert, mas descobrem que um culto misterioso e traficantes de seres humanos estão envolvidos no caso. Quando finalmente se aproximam da verdade, a verdadeira intenção de Sayoko é revelada.
Ambos os títulos prometem ampliar a popularidade de Kiyoshi, na Ásia e fora dela. O lema do diretor: "Enquanto nossas miopias morais nos impedirem de perceber o Mal que está ao nosso redor, sob o disfarço de códigos de conduta rigorosos, o cinema de suspense vai existir e há de seguir a arrebatar pessoas".