Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Para sempre Truffaut

O cineasta francês tem a obra revista quatro décadas após sua morte | Foto: Divulgação

Está aberta a temporada da saudade em torno de um nome que, em tela grande, transformou-se em sinônimo de lirismo: François Truffaut (1932-1984). No dia 21 de outubro, o cinema (da França, sua pátria natal, e de todo mundo) lamenta os 40 anos da morte do diretor laureado com o Oscar por "A Noite Americana" (1973). Europa adentro estão previstas retrospectivas de seus sucessos, mas a largada para a celebração de seu legado acaba de ser dada com a chegada ao circuito francês do documentário "Le Scénario De Ma Vie", de David Teboul. Exibida em Cannes, em maio, essa produção dirigida por David Teboul se baseia em imagens de arquivo (algumas conhecidas, outras não), em entrevistas pouco conhecidas de Truffaut, na sua correspondência com o pai (adotivo) e, sobretudo, num relato autobiográfico iniciado alguns meses antes da sua batalha final contra o tumor no cérebro que o matou.

Teboul parte de uma anedota do audiovisual parisiense segundo a qual os filmes de Truffaut se movem como trens, disparando na imaginação como expressos noturnos. Segundo a pesquisa do documentarista, a vida do cultuado diretor seguiu o mesmo ritmo, mas tinha apenas 52 anos quando surgiram as palavras O Fim em seu caminho. Alguns meses antes de morrer, o cineasta tinha começado a partilhar a história da sua juventude com o seu velho amigo, Claude de Givray, mergulhando profundamente na sua história familiar, a fim de fazer um livro com suas recordações. Seu tempo de tela (e na Terra) acabou por escassear e FT não conseguiu terminar sua autobiografia, a que tinha planeado chamar "O Roteiro da Minha Vida". O que Teboul faz, a partir de registros epistolares, é revelar o que seria essa derradeira narrativa truffautiana. Sua investigação arranca lágrimas de cinéfilos.

Comove sobretudo aquelas e aqueles que se irritaram com o americano Quentin Tarantino quando o gênio por trás de "Pulp Fiction" (1994) acusou Truaffut de ser superestimado e de ter criado uma narrativa quase amadora em sua incursão pelos códigos do filme policial, como "A Noiva Estava de Preto" (1968). Já Steve Spielberg teve uma atitude oposta ao falar dele quando recebeu o Urso de Ouro Honorário, na Berlinale 73, em fevereiro. "Estava com ele nos sets de 'Contatos Imediatos do Terceiro Grau' e eu queria aproveitar a chance de estar a seu lado, para aprender, quando toquei na ideia do que viria a ser 'E.T.'. Como tinha feito, há pouco, 'Na Idade da Inocência', com elenco juvenil e infantil, Truffaut me disse que eu deveria arriscar numa criança como protagonista. A força da infância, com um ser do espaço, contagiaria as plateias. Como ele estava certo. Como eu devo a ele", disse Spielberg, que faz parte do coro gigantesco de fãs do realizador.

 

'Eu me sinto parte desse grupo de cineastas para quem o cinema é um prolongamento da juventude'

Com 'Os Incompreendidos', François Truffaut vendeu 4 milhões de ingressos e ganhou o prêmio de Direção de Cannes | Foto: Divulgação

Em 1959, Truffaut fez de "Os Incompreendidos" um marco de reinvenção das formas de olhar e um fenômeno de bilheteria, com quatro milhões de ingressos vendidos só na França, onde ganhou a láurea de Melhor Direção em Cannes. E é lá mesmo, em seu país de berço, que o mercado editorial se agita em torno da efeméride de sua partida. Uma das agitações é o lançamento do livro "Lettre Ouverte à François Truffaut", de Eric Neuhoff. É uma coletânea de artigos, em forma de cartas, nos quais o autor louva a relevância do cineasta a construção de narrativas amorosas.

Em bancas em quiosques de Paris, a "Cahiers du Cinéma", a mais prestigiada revista focada no pensamento audiovisual de todo o planeta, oferta um mimo para seus leitores - atraindo também novos públicos - de flerte com a obra de Truffaut: um dossiê com curiosidades, resenhas analíticas e textos do mítico realizador.

"Eu me sinto parte desse grupo de cineastas para quem o cinema é um prolongamento da juventude, como se fôssemos crianças a quem mandaram brincar num canto, que reconstruíram o mundo com os brinquedos e, na idade adulta, continuam brincando com os filmes. É o que chamo de cinema do quarto dos fundos, com uma recusa da vida tal qual ela é, o mundo em seu estado real e, em reação, com uma necessidade de recriar alguma coisa que se aproxime um pouco do conto de fadas, um pouco do cinema que nos fez sonhar quando éramos jovens", escreveu Truffaut em de seus ensaios memorialísticos sobre uma obra cheia de êxitos, como "Jules e Jim - Uma Mulher Para Dois" (1962), "Um Só Pecado" (1964) e "Domicílio Conjugal" (1970).

As palavras, as coisas e os filmes de Truffaut: essa é a melhor forma de se entender o amor romântico nas últimas seis décadas, a partir da estreia de "Os incompreendidos", em 4 de maio de 1959, no Festival de Cannes. O longa saiu da Croisette aclamado, coroando a fúria criativa de um jovem crítico de cinema e realizador cuja bandeira era revolucionar o cinema a partir da inclusão das sequelas sociais, morais e afetivas do tempo de contracultura que se desenhava à sua frente.

Laureado com 31 prêmios numa carreira que vai de 1955 a 1983, coroada com três indicações ao Oscar e muitos sucessos de bilheteria, Truffaut mudou a forma de se fazer e de se ver filmes a partir de um projeto estético de hemodiálise da imagem a partir de um engajamento das narrativas audiovisuais com as fraturas éticas e emotivas do mundo a seu redor, modificando os dispositivos de construção do discurso cinematográfico de modo a fugir do engessamento, do classicismo. Assumiu a infância ("O garoto selvagem"), o feminino ("A mulher do lado") e o próprio ofício de cineasta ("A noite americana") como seus temas mais essenciais, passeando por gêneros diferentes, em prol da renovação da cinefilia. Repensou o papel do espectador e os deveres do contador de histórias. E, mais do que tudo, repensou o amor. Binômio vivo de arte desejo, seu cinema nos deixou como legado a necessidade de se discutir o querer como um verbo de ação e não como de ligação com as tradições burguesas.

Diretor, produtor, roteirista, crítico e ator, Truffaut sempre entendeu o filme "como algo íntimo, como uma carta" - como disse certa vez, em entrevista. Saiu de cena com "De Repente Num Domingo", lançada no Festival de Locarno, em 1983. Ao longo de sua carreira, Truffaut pintou com traços ao mesmo tempo delicados e vigorosos, o cotidiano francês. Era meticuloso ao extremo e, pela fama de seu perfeccionismo, era confrontado com perguntas sobre suas predileções cinéfilas múltiplas vezes. Certa vez, indagado sobre que cinema do mundo preferia, respondeu: "Para mim, o cinema não tem nacionalidade. O importante são as pessoas que fazem um bom trabalho".